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Leia na Fonte: Consultor Jurídico
[04/07/14]  Reflexões sobre o Marco Civil da internet - por Fabio Caldas de Araújo

Fabio Caldas de Araújo é juiz no Paraná, mestre em Direito pela PUC-SP, doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, professor do Mestrado da Unipar e na Especialização do Cogeae e do Curso Marcato.

A aprovação do marco civil é tardia, mas bem-vinda, pois revela a quebra da indiferença de nosso sistema com o mundo virtual. Nosso singelo objetivo será o de traçar algumas considerações de ordem material e processual sobre a recentíssima aprovação do marco civil (Lei 12.965/2014). A necessidade de regulação do uso da internet decorre da transposição das relações jurídicas para a plataforma virtual.

É interessante observar que as questões suscitadas pelo uso da w.w.w (world wide web) são exatamente as mesmas enfrentadas no mundo real, contudo, marcados por um dado essencial: a dispersão mundial. Esta nota vem reconhecida expressamente pelo art. 2º, I da lei nº 12.965/14. Em sua origem, a plataforma w.w.w é vulgarmente confundida com a internet, quando na verdade corresponde apenas a uma das formas de ligação entre os usuários. Sua criação, como informa Köhler, foi consumada na década de 90 no centro de pesquisas de Kern, em Genebra (Kernforschungszentrum).[1]

A existência da rede, por si só, não alcançaria sucesso sem a possibilidade de comunicação entre os usuários. Este é o ponto nodal e que possibilitou a modificação da visualização das relações jurídicas por meio da transferência de dados entre os usuários pelo sistema de hiper link, ou seja, com a criação de uma protocolo de transferência de dados conhecido vulgarmente como HTTP.

Por este motivo, com a possibilidade de interligação simultânea dentre duas, ou milhares de pessoas, a regulamentação jurídica é essencial. A lei do marco civil é sintética, no que andou bem, contudo delimita traços elementares como a definição de internet, terminal ou endereço IP (lei nº 12.965/14, art. 5º, I, II e III) .

Há uma clara intenção no texto aprovado em diferenciar os problemas relacionados à guarda, sigilo e responsabilidade sobre os dados dos usuários e o papel dos provedores. O marco civil corresponde a uma carta principiológica que traça as diretrizes fundamentais sobre o mundo virtual no Direito brasileiro, mas que jamais poderia abarcar o Direito material e processual de modo cerrado. Esta tarefa caberá à doutrina, aos juristas e aos tribunais que paulatinamente demonstrarão ao legislador os pontos de ajuste e adaptação necessários no ordenamento jurídico.

Um exemplo claro desta afirmação reside na lei nº 11.419/2006 que regulamentou as diretrizes básicas do processo eletrônico e da própria Resolução nº 121/2010 do CNJ, que em seu art. 1º, torna obrigatória a divulgação ampla e irrestrita dos dados processuais, independentemente do usuário ser cadastrado ou não, o que atende claramente ao disposto no art. 2º, IV da lei nº 12965/14 : “A consulta aos dados básicos dos processos judiciais será disponibilizada na rede mundial de computadores (Internet), assegurado o direito de acesso a informações processuais a toda e qualquer pessoa, independentemente de prévio cadastramento ou de demonstração de interesse”.

Se por um lado, a abertura e publicidade são garantidas como postulados quanto à circulação de dados, uma garantia essencial para a manutenção do InterRelay da rede, é óbvio que em algumas situações, a publicidade será restringida, como perante processos sigilosos que correm em segredo de Justiça, afinal, como determina nossa Carta Magna ela será possível quando necessária a preservação da intimidade das partes (CF, art. 93, IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação).

Neste diapasão, o art. 7º da lei nº 12965/14 prevê a proteção ao sigilo, com a salvaguarda da requisição judicial: “O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”. A preservação dos dados não diz respeito apenas à garantia da inviolabilidade, mas à mantença por período mínimo e com interesse público, o qual será essencial para a produção de material probatório. Os provedores de conexão (art. 13) terão o dever de zelar pelos registros por prazo de um ano e para os provedores de aplicação (art. 14) o prazo de guarda dos registros de acesso será de seis meses.

A transposição do relacionamento e da interação entre as pessoas para o meio virtual torna essencial que parâmetros sejam definidos perante esta nova realidade. Por outro lado, conforme já afirmado, não há mudança quanto ao substrato a ser protegido, apenas a necessidade de adaptação e compreensão especialmente quanto à insuficiência dos modelos dogmáticos tradicionais do Direito material e processual para o tratamento das querelas virtuais. Com a percepção deste enfoque é possível afirmarmos que o marco civil pretende transpor, com realce normativo, o tratamento dos direitos da personalidade e a tutela negocial (rectius, contratual) para o mundo virtual. Dentre as maiores dificuldades encontradas até o presente momento percebe-se a tensão entre o direito à privacidade e o direito à informação. A proteção ao direito à intimidade e ao direito de não ser perturbado (the right to be alone) entra em colisão com o direito à informação sobre aquele que participa da rede virtual. Ambas as situações são tuteladas pela lei do marco civil (art. 3º I-direito à informação, II e III- proteção à privacidade e intimidade). Até que ponto alguém pode ser responsabilizado por emitir uma opinião? Em que ponto o juízo de valor se torna uma agressão? É possível considerar que o ato de “curtir” pode ser encaixado no ato de propalar uma injúria? Adentrando na investigação, ainda que em juízo de delibação, podemos afirmar que o legislador optou por excluir qualquer responsabilidade dos provedores de conexão, os quais são tratados como meros instrumentos de aproximação e interação, mas sem qualquer ingerência sobre o conteúdo postado. Esta opção tem como pressuposto eliminar a necessidade de valoração, sob pena de eventual censura ou restrição indevida, nos termos do art. 18: “O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.” A opção legislativa, a princípio é correta. É muito difícil, em muitas situações analisar se o conteúdo de uma mensagem possui, ou não, caráter ofensivo. Afinal, uma “postagem virtual” frente a um terceiro não revela o grau de relacionamento e muitas vezes o contexto em que o pensamento é declarado por meio de uma mensagem. Sob a perspectiva da teoria do conhecimento, se há dificuldade do sujeito conhecer a si mesmo, ou mesmo, o objeto de sua intelecção, o que dizer de um terceiro que procura apreender o significado da relação interativa entre estranhos?

Como meio de permitir a tutela específica resguardada pelo texto constitucional (CF, art. 5º X e art. 11 CCB[2]), o art. 19 determina que a responsabilidade civil somente alcance os provedores de aplicação, quando “após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. Visualiza-se aqui uma distinção clara entre provedores de conexão e provedores de aplicação sendo estes os responsáveis pela criação dos conteúdos que são ofertados para a divulgação de ideias, prestação de serviços ou fornecimento de bens por meio de suas plataformas virtuais. Por outro lado, a jurisprudência definirá em quais situações esta responsabilidade será subsidiária especialmente pela falha do serviço quanto à não identificação do terceiro ofensor. Para esta correta identificação os provedores de conexão, de aplicação ou mesmo aqueles responsáveis unicamente pela guarda e sigilo das informações necessitam preservar, com o devido sigilo os dados de conexão e dados de acesso aos aplicativos. Qualquer usurpação indevida constitui ilícito autônomo com previsão das sanções que vão de advertência (art. 12, I) até a proibição de exercer a atividade (art. 12, IV).

No que tange à tutela negocial ela pode ser visualizada pela proteção do art. 3, VIII quanto à proteção da: “liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei”. E mais, a liberdade negocial em condições de oportunidade otimizada restou garantida pelo princípio da neutralidade da rede, conforme dispõe o art. 9º: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. A garantia da neutralidade visa a permitir a universalidade no uso e dispersão do mundo virtual, um dos corolários de sua criação e motor propulsor de sua expansão.

O art. 30 estabelece que a tutela jurisdicional poderá ser exercida de modo individual ou coletivo, portanto as ações coletivas não estão excluídas para a tutela do direito à informação, ou mesmo para a proteção da exposição de informações e imagens nocivas ao convívio social. A tutela processual inibitória e ressarcitória assume papel crucial para a salvaguarda da personalidade da pessoa física e jurídica[3]. O art. 19, §2º remete expressamente a discussão sobre direitos autorais para a legislação específica, o que não poderia ser diverso, inclusive conforme advertência supramencionada, pois o marco civil não pode esgotar os possíveis conflitos oriundos do direito material. A previsão da tutela de urgência está explicitada no art. 19, §4º, contudo de modo defeituoso, pois a concessão de tutela de urgência não está restrita unicamente para o pedido de disponibilização de conteúdo, mas também para a sua restrição. O termo “ interesse da coletividade” baralha o instituto, ao trazer a falsa noção de que a concessão estaria atrelada sempre à disponibilização, em vista da garantia do direito à informação. Se o conteúdo for comprovadamente injurioso e falso nada impede que o pedido de indisponibilização do conteúdo por meio de tutela antecipada. A previsão da possibilidade de realizar o pedido perante os juizados especiais (art. 19, §3º) é interessante, mas desde que sejam devidamente aparelhados. A litigiosidade crescente ante a “descoberta dos direitos” aumentou a profusão de demandas nos juizados especiais cíveis estaduais e federais. Há necessidade de melhor estrutura e capacitação, ante a especialidade da matéria que será posta em juízo, sob pena de extinção do feito pela “complexidade da causa”. Por fim, o conceito Pontiano quanto à distinção entre ação processual e material[4] foi lembrado no art. 21 da lei, na medida em que prevê ato jurídico unilateral não receptício marcado pela notificação com delimitação específica do material para fins de exclusão imagens ou vídeos com cenas de nudez ou sexo, sem autorização dos seus participantes. Não há fixação de prazo mínimo para a indisponibilização o que deverá ser apreciado no caso concreto, contudo, a retirada propositadamente tardia gerará indenização por danos materiais e morais. Ainda como ato material, denota-se a tutela do poder parental pela leitura do art. 29 que permite a restrição dos pais quanto ao acesso de conteúdos impróprios. O parágrafo único, aliás, poderia ser eliminado, pois a educação e a orientação não cabem ao poder público, mas aos pais, os quais em conjunto educam seus filhos no seio familiar. O poder público somente deverá agir subsidiariamente, especialmente, com política de incentivo cultural e pela inserção de grade de ensino curricular. E mais, esta politica deve abarcar crianças, adolescentes, adultos e idosos, ou seja, para a inserção digital de todo e qualquer cidadão. Afinal, no mundo hodierno exsurge a figura do analfabeto digital.

Estas breves considerações revelam que o marco civil representa apenas o plano principiológico para a tutela dos direitos (materiais e processuais) na esfera digital, contudo, com previsão ainda tímida em face de toda a gama variada de questões que ainda serão enfrentadas em juízo pelo aumento do e-commerce, das redes sociais e da comunicação digital e cujos efeitos ultrapassam o princípio da territorialidade (Fremdenrecht)[5] levando-nos a uma nova era dos descobrimentos.

[1] Rechts des Internet, p. 20, 6. Auflage, Tübingen, 2008.

[2] Sobre a tutela material e processual do direito à personalidade, José Miguel Garcia Medina e Fabio Caldas de Araújo, Código Civil Comentado, pp. 45-57, RT, 2014.

[3] STJ, Súmula 227 : “ A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

[4] Tratado das Ações, Tomo I – Ação, Classificação e Eficácia, p. 109, RT, 1970.

[5] Vide, Köhler, Recht des Internet, pp. 270-273. Na verdade, a ausência de barreiras territoriais no mundo virtual torna muito mais complexa a tímida proteção prevista pelo art. 8º, parágrafo único, inciso II do marco civil: “São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que: em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil”.