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Leia na Fonte: INFO
[15/06/14]
"Uma lei internacional da internet é inviável", diz Demi Getschko, um dos
pioneiros da rede no Brasil - por Gustavo Gusmão
Aos mais envolvidos na área, Demi Getschko é um nome que dispensa muitas
apresentações. Desde 2006, ela ocupa o cargo de diretor-presidente do Núcleo de
Informação e Coordenação do Ponto BR, o NIC.br. A entidade é diretamente ligada
ao Comitê Gestor de Internet no Brasil, o CGI.br, órgão responsável por
coordenar toda a web no país – e que tem o engenheiro como membro do conselho há
nove anos, desde 1995.
Getschko ocupa os dois postos por ter sido um dos principais nomes envolvidos na
implantação da internet no país. E dada sua relevância dentro (e mesmo fora) do
Brasil, foi ele também o primeiro brasileiro a ser incluído no Hall da Fama da
Internet, ainda em abril deste ano. Mas não na categoria de pioneiros ou
inovadores, e sim na de “conectores globais”, como ele mesmo faz questão de
ressaltar.
Esse, aliás, foi um dos temas tratados pelo engenheiro em entrevista concedida a
INFO, em sua sala nos escritórios do NIC.br. O bem-humorado executivo também
falou do Marco Civil da Internet, sancionado no final de abril, além de tratar
de questões de privacidade e da própria web no Brasil. Confira a seguir.
O Marco Civil da Internet foi aprovado no último mês de abril, mas nem todo
mundo ficou contente com isso. Você vê como totalmente positiva a legislação da
forma como ela foi aprovada ou ainda falta algo?
Acho que é bem provável que algumas coisas entraram como compromisso para poder
passar no Senado, mas elas não prejudicam as três colunas básicas do Marco
Civil. No caso da remoção de conteúdo com ordem judicial, por exemplo, ele abre
uma exceção quando o processo envolve as “partes pudendas” de alguém. Se alguém
disser que as partes expostas na internet são suas — eu não sei como vai provar
isso —, esse alguém tem o direito de remover aquilo sem ordem judicial. Isso vem
diretamente da lei Carolina Dieckmann, aprovada há algum tempo, e ainda não dá
brecha: tem que ser a própria pessoa quem pede a remoção. E ainda tem uma parte
estranha que está na lei, que diz que se for uma foto em grupo, também não pode,
mas tudo bem, não entro no mérito desses detalhes mais abjetos do processo. De
qualquer forma, se está errado, não é no Marco Civil.
E em relação à privacidade, no caso dos logs de acesso? Foi uma das partes que
mais gerou polêmica entre usuários.
Primeiro é preciso distinguir claramente log de acesso de logo de serviço.
Porque o log de acesso é algo localizado fisicamente, geograficamente, mostra
que você acessa a internet por determinado lugar. Eu posso acessar uma loja de
CDs daqui e estar na Alemanha, na Áustria ou em algum outro lugar. Então, para
mim, essa decisão foi para manter certa simetria. Mas o que diz lá esse negócio?
Diz que, em alguns casos específicos, quando a pessoa tem ação econômica, ela
precisa guardar os logs. Só que esse log está guardado, mas não necessariamente
disponível – ele precisa ser solicitado por alguém. Agora vamos fazer uma
comparação com a realidade: você acha que algum provedor de serviços sério, com
fins comerciais, já não guarda logs? Trabalhei no Estadão e eles guardavam, no
IG também... Certamente a Amazon faz o mesmo. Não tem cabimento uma empresa
assim não guardar logs. Então é “chover no molhado”, porque já fazem isso. O que
não gostariam que fosse atingido? Quem não guarda log, não deveria ser obrigado
a fazê-lo. E a redação do artigo 15 não obriga um blogueiro, por exemplo, a
fazer isso – mas se ele quiser, ele pode, porque se um sítio é dele, tem todo o
direito de colocar um livro de visitas na entrada.
Acho que se fez muito barulho em cima disso, e não vejo um problema aí. Se você
quer ver um problema, algo que precisa ser definido na regulamentação, veja o
caso das autoridades que podem pedir pelo log. Na legislação, está escrito que
são as competentes, mas isso precisa ser um pouco melhor esclarecido. Mas um
resumo da ópera: continuo achando que a aprovação do Marco foi uma excelente
vitória. E que, como tudo mundo, ele não é perfeito, mas ainda não estamos na
última chance de consertá-lo.
Já que estamos falando de privacidade, uma das ideias que ouvi durante o evento
sobre o Marco é a de criptografar todo o tráfego mundial. Você acha isso viável?
Veja bem, isso é viável se fizermos isso nas pontas, porque no meio é impossível
– a internet não vai criptografar isso aí. Acho até que isso é uma campanha.
Naqueles slides do PRISM, que vazaram no ano passado, dizem o seguinte em
relação a isso: se encontrarmos um e-mail criptografado e a chave for simples,
dá para quebrar. Mas se ela for mais avançada e for impossível de decifrá-la, ao
menos acompanhe o suspeito. Isso quer dizer que, se hoje você trocar conteúdos
criptografados com alguém, você já vira um suspeito. Então, um jeito de
contornar isso é cifrar as coisas maciçamente. Se todo mundo fizer isso, não tem
como acompanhar, ainda mais porque criptografia pesada é ruim de quebrar – e
ninguém vai querer gastar anos de CPU para quebrar um recado marcando um
churrasco.
Em relação a isso, o Google anunciou recentemente a possibilidade de se
criptografar o tráfego de e-mails ponta a ponta com a criação de um plugin para
isso. É um avanço, não?
Isso é bom para o próprio Google, se você quer saber. Porque, por exemplo, temos
um senador aqui no Brasi, cujo sigilo do e-mail estão tentando quebrar. E isso
precisa ser feito na matriz, no Google americano, que resiste por causa da lei
americana e etc. O político não tem como apagar as coisas que o comprometem de
lá do servidor, porque elas estão nos backups eternos de informação do provedor.
Então, quando o Google faz a proposta de criptografar todo o tráfego, ele pode
delegar e dizer para as autoridades: “Está aqui, mas está cifrado. Você quer?”.
Se a chave PGP estiver com o dono das mensagens, vão ter que torturá-lo para
tirá-la dele, não sei, não tenho ideia de como é isso aí. Ou seja, isso é uma
saída para a própria empresa. Porque senão nunca vai ficar claro se eles cederam
às autoridades antes da hora, se eles resistiram, se eles foram a favor da
privacidade, se foram a favor de colaborar, se cederam a um governo e não a
outro... Quer dizer, é uma área cinzenta, em que as empresas ficam em uma
posição delicada. Então, se estivesse tudo criptografado, elas poderia dizer:
“Olha, se quiser os e-mails, estão aqui. Mas o que está escrito neles, não tenho
ideia”.
Mas agora juntando tudo, Marco Civil com privacidade e criptografia: seguindo
tudo isso, você acha que seria viável termos uma legislação similar, mas valendo
para a internet mundial? Foi outra ideia que vi surgir durante as discussões
relacionadas ao MC, mas que acabou tratada como utópica.
Exatamente, foi algo que discutimos durante a European Comission, em Salzburg.
Eu acho inviável pleitear uma lei internacional. O Marco Civil funciona porque é
uma legislação nacional. As leis de privacidade não são iguais em todos os
países, a proteção ao consumidor não é igual em todos os países. São coisas
localizadas, têm fronteiras claras. O que não é localizado mesmo são só os
princípios gerais que criaram na própria internet. Por mais que digamos que ela
é sem fronteiras, os fins legais têm que ser respeitados. E acho que ainda
existem assuntos que precisam ser tratados de uma forma legislativa que não
estão bem entendidos. Lembro-me de uma decisão contra o Facebook, que dizia o
seguinte: o serviço deveria ser condenado porque ele fazia dinheiro no país sem
seguir as leis nacionais. Não entro no mérito disso, mas como é que se controla
esse negócio? De fato ele pode ser proibido, só que isso é incontrolável do
ponto de vista de internet. A legislação dizer que a pessoa fez dinheiro aqui e,
portanto, tem que respeitar nossa lei é bonito do ponto de vista de figuração,
mas não muito no sentido prático. Essas coisas ainda estão muito mal definidas e
precisam ser tratadas com mais cuidado e mais complexidade, porque estão
aparecendo agora. É uma discussão bastante complexa, e sem a concluirmos, acho
difícil fazer um Marco Civil Internacional.
Saindo um pouco da pauta, mas relacionado à repercussão que o Marco teve nos
últimos meses: quando você participou da implantação da internet no Brasil, você
imaginou que ela atingira essa dimensão toda, a ponto de precisar de uma
“legislação própria”?
Olha, claro que não. Em primeiro lugar porque sou ruim em profetizar coisas,
apesar da barba. Segundo, porque a internet começou na área acadêmica, e ela era
basicamente texto. Por mais que ela fosse ótima – e ela era ótima, era uma
atividade bastante sofisticada do ponto de vista geral. Você não imaginava que
alguém fosse escrever marcando um churrasco na casa dele, ou dar um FTP para
baixar uma imagem que levaria um tempão. O que mudou nisso tudo, e que também
não era previsto, foi a entrada da web. Quando ela chegou, em 92 ou 93 no
Brasil, começaram a aparecer essas coisas, e a minha primeira sensação a
respeito foi: “Bom, agora atolamos de vez e nunca mais vai passar nada, porque
com umas imagens desse tamanho...”. Na época, a gente trabalhava com listas de
64k, e uma foto só travava tudo. Mas ao mesmo em que a web aconteceu, a fibra
óptica se espalhou por todo lugar. A nossa primeira linha de 2 MB era a
satélite, e era horrível, porque tinha um delay de meio segundo. Mas a linha
terrestre não, ela era (e ainda é) bem mais fácil, usa uma fibra óptica muito
menor. Então a gente não previa. A expansão de fibra submarina e terrestre foi
algo maravilhoso, e é um treco que até hoje não sabemos qual é o limite. Temos
hoje uma interface de 100 Gbps trabalhando aí na boa. É uma maravilha, as
possibilidades são enormes, e ainda é até barato – fibra é vidro, não tem muito
custo aí, e ela ainda é leve.
O que você espera para o futuro da internet no Brasil?
No Brasil, estamos em uma situação bem diferenciada nos seguintes sentidos: uma
coisa é a internet metropolitana, que oferece opções de conexão, redes de fibra
até as casas, etc e tal. E outra são as regiões remotas do país, onde mal se
consegue fazer conexão discada. Às vezes nem energia elétrica tem por lá, então
é muito complicado. Então acho que o primeiro ponto fundamental para nós seria
dar acesso a todos. E por que seria fundamental? Porque o acesso à informação
muda completamente o posicionamento do cidadão. Não precisa ser uma conexão que
permita ver um filme 3D ou grandes interações gráficas. Mas se você tiver acesso
pelo menos à web normal, para ler noticiário, participar de rede social, isso já
muda completamente a postura do indivíduo e a ação dele perante a sociedade. É
claro que a informação na internet tem qualidades variáveis, mas é melhor ter
essa variedade toda do que não ter acesso a nada. Com o tempo você vai filtrar e
descobrir que isso é mais confiável que aquilo, que aqui é melhor que ali... É
uma decisão sua. Mas pelo menos se passa a bola para o usuário. E acho que se
isso acontece, a bola não volta mais.
Por fim, em relação ao Hall da Fama da Internet: você foi o primeiro brasileiro
a ser incluído lá. Como foi o processo de seleção e a cerimônia toda?
Então, veja bem: esse prêmio tem três categorias, coisas diferentes. Tem a de
pioneiros, aquela onde estão as pessoas que desenvolveram o TCP/IP, figurinhas
carimbadas. Depois tem a de inovadores, do pessoal que usou a estrutura para
fazer algo em cima. A figura mais notável aí talvez seja o Tim Berners-Lee, que
desenvolveu a web em cima do TCP/IP. Aí a terceira categoria, que é menos focada
nos EUA e na Europa, é a de Global Connectors, das pessoas que ajudaram a
disseminar a internet pelas respectivas regiões. O primeiro latino que entrou aí
foi uma professa da Universidade de Montevidéu, que ganhou o posto no ano
passado. Eles abrem a votação por alguns meses, e pessoas da rede citam nomes, e
tem apoios e mais apoios... Isso tudo é levado para um comitê, que examina e
escolhe. A gente é passivo nisso, recebe de surpresa. Evidente que fiquei muito
feliz de terem me escolhido, mas deixei muito claro que, em primeiro lugar, isso
é algo coletivo no Brasil. Muitos nomes contribuíram para [a implantação da web
aqui], sou apenas um deles. Evidente que é melhor ter escolhido alguém do Brasil
do que não ter ninguém daqui, mas eu não me arrogo o papel do cara que fez ou
deixou de fazer. Temos uma porção de gente trabalhando no processo, como o Oscar
Sala, o Tadao Takahashi, o Michael Santos, o Alberto Gomide, um monte de gente.
Eu sou um desses aí.
Em suma, foi uma decisão importante para o país, assim como o reconhecimento do
Marco Civil internacionalmente, não foi?
Então, acho que é a mesma coisa no final no seguinte sentido: acho que o Brasil
sempre esteve muito bem na internet, e não é falso ufanismo. Quer dizer, o
decálogo do Brasil foi uma inovação, causou impacto e foi comentado em Salzburg.
De algum forma, também sempre tivemos um modelo de governança que antecipa as
coisas. O Comitê Gestor, criado em 1995, por exemplo, é anterior à ideia do
ICANN, que surgiu em 1998. Três anos antes do ICANN o Brasil já tinha uma
governança em que se espelhavam os setores da sociedade. Uma porção de gente
atuou para gerar uma imagem muito positiva do país. E se você somar a isso o
fato de que os brasileiros são usuários entusiastas de novidades, caindo de
cabeça em tudo, verá que somos muito ativos. Não temos, lamentavelmente, grandes
aplicações de sucesso brasileiras, mas nós temos vários inovadores que
conseguiram bastante resultado, sucesso na rede. E imagino que nós ainda temos
potencial em software, em desenvolvimento, capaz de gerar uma inovação de
impacto na rede, e não queremos amarrar a mão desse pessoal. Gostaríamos que
eles pudessem fazer em benefício deles e do país.