Fonte: Jus Navigandi
[30/10/00] A
fraude da urna eletrônica - por Paulo Gustavo Sampaio Andrade
Paulo Gustavo Sampaio Andrade é advogado em Teresina (PI), especialista
em Direito Constitucional pela Escola Superior de Advocacia do Piauí
O Brasil foi o primeiro país do mundo a informatizar
totalmente o processo eleitoral, e ainda é o único. Mas a urna eletrônica
brasileira, tal como está, representa, sob a aparência de um pioneirismo
tecnológico, um retrocesso na instituição democrática do voto. Foram
desprezados procedimentos de segurança eletrônica, bem como diversas
garantias jurídicas do eleitor que já existiam na urna convencional.
Apesar de a primeira votação com a urna eletrônica ter
ocorrido há quatro anos, pouco ou nada se questionou acerca de sua segurança
desde então, ao menos na grande imprensa. Na Internet, o Fórum do Voto
Eletrônico (www.votoseguro.org), do
qual participam especialistas em informática, advogados, jornalistas e
público em geral, tem feito análises científicas sobre a segurança da urna
eletrônica, e chegado a conclusões preocupantes.
É inegável que a urna eletrônica evita a maioria das
fraudes, principalmente aquelas amadorísticas, feitas com papel e caneta,
nas quais urnas eram "engravidadas" com cédulas falsas, ou votos em branco
eram desviados para certos candidatos. Contudo, a votação totalmente digital
deixou abertas brechas para novos tipos de fraude, estas profissionais, com
repercussão muito maior e, o que é pior, totalmente indetectáveis.
Ao votar, o eleitor vê na tela da urna o nome e o
número do candidato, e depois confirma. Mas um programa malicioso escondido
na própria urna pode fazer com que o voto guardado na "memória" da urna seja
diferente do que foi visto na tela. Pode-se, por exemplo, fazer inserir nos
programas da urna um comando para que, a cada quatro votos para um
candidato, um seja desviado para outro candidato. Pior: este programa de
desvio de votos pode ser programado para se autodestruir, sem deixar
vestígios, às 17 horas do dia da votação, tornando inócua qualquer
verificação posterior nos programas da urna.
E você sabia que, caso um partido político, por algum
motivo, venha a pôr em dúvida o resultado de qualquer urna, é tecnicamente
impossível fazer uma recontagem dos votos? O máximo que poderá ser feito é
simplesmente imprimir novamente os dados que já foram impressos
anteriormente. Ao contrário do voto convencional, no qual a fraude sempre
deixava algum vestígio, o voto eletrônico permite a existência da fraude
perfeita.
O Fórum do Voto Eletrônico apontou uma solução bastante
simples para permitir a auditoria das urnas. Bastaria que fosse impresso um
comprovante de voto, que possa ser conferido visualmente pelo eleitor e
depois depositado automaticamente numa urna convencional própria anexada à
urna eletrônica, sem necessidade de manuseio. Assim, cria-se uma contraprova
posterior em caso de dúvida, para fiscalização ou recontagem.
Outro problema encontrado é a possibilidade técnica de
violação do voto secreto, pois, sem necessidade alguma, o terminal onde se
digita o número do título de eleitor fica ligado à urna. Bastaria a
desconexão entre o terminal e a urna para eliminar este risco. É uma
alteração tão simples que o TSE sequer comenta o assunto.
Estas duas idéias foram adotadas por um projeto de lei
de autoria do senador Roberto Requião (PMDB), que se encontra em discussão
no Senado, contra o qual, porém, o Tribunal Superior Eleitoral vem
empregando ferrenha resistência, não se sabe a que pretexto.
Alega o TSE que os programas das urnas são auditados
pelos partidos, e foram por eles aprovados. Em verdade, os programas foram
disponibilizados por apenas 5 dias, para análise dentro do próprio prédio do
TSE, tempo e local inadequado para qualquer verificação. Além do mais, os
programas também não foram disponibilizados integralmente, pois o TSE alega
que existe um "bloco de segurança" que não pode ser divulgado (*). Ora, se
existe uma parte que não é conhecida, frustra-se todo o processo de
auditoria: não se pode aprovar o que não se conhece por completo. E quem
conhece informática sabe muito bem que o fato de um código ser aberto não
implica em que seja inseguro, muito pelo contrário!
E mais: parte deste "código secreto" é elaborado por um
órgão da ABIN (ex-SNI), órgão diretamente ligado ao Executivo federal. Algo
como se a NSA ou a CIA fosse responsável pela eleição norte-americana. Há
ainda programas que são criados por empresas privadas e outros órgãos
públicos, que não estão sob o controle direto da Justiça Eleitoral.
Por fim, o próprio TSE admite que os programas das
urnas são alterados entre o exíguo prazo de "fiscalização" pelos partidos e
a data das eleições. Além do mais, quem garante que todas as urnas do Brasil
(são 320.000 seções eleitorais, em mais de 5.000 cidades) possuem todas os
mesmos programas instalados?
Resposta: a garantia é a palavra do TSE: "nós
garantimos que a urna é segura". Ora, a democracia de uma Nação não pode se
basear apenas na palavra da Justiça Eleitoral. Estamos numa situação em que
não temos mais o direito de saber o que acontece com o nosso voto, pois
somos obrigados a depositar na "caixa preta" chamada de urna eletrônica,
além de nosso voto, uma confiança cega, total e irrestrita na honestidade da
Justiça Eleitoral e de todas as pessoas envolvidas na confecção da urna
eletrônica e de seus programas.
Não se afirma aqui que já houve fraude nas eleições
eletrônicas ou que os desenvolvedores da urna desejem sinceramente que ela
aconteça, embora possam com ela estar contribuindo por excesso de confiança.
O objetivo é de apontar soluções para que os avanços técnicos proporcionados
pela computação sejam utilizados em prol da segurança do voto, viga mestra
da democracia.
NOTA
(*) O PDT (Partido Democrático Trabalhista) apresentou, em 6 de agosto de
2000, durante o prazo de cinco dias previsto para análise dos programas da
urna eletrônica, uma impugnação junto ao Tribunal Superior Eleitoral,
alegando, em suma, a falta da apresentação de todos os programas da urna, e
o fato de a CEPESC (órgão da ABIN, ligado à Presidência da República) estar
participando da elaboração dos programas da urna, numa interferência
inconstitucional na Justiça Eleitoral. Em 5 de setembro, em sessão
administrativa, foi indeferida a impugnação do PDT, alegando que os
programas não foram exibidos por questões de direitos autorais ou porque são
programas "de segurança". Ocorre que, como a Lei 9.504 não faz exceção,
mesmo estes deveriam ter sido exibidos, não havendo como alegar direitos
autorais ou qualquer outro motivo para ocultá-los. A decisão apenas
reafirmou que a urna é segura, com base em meras garantias verbais. O
mandado de segurança contra esta decisão também teve a liminar negada, e o
mérito não foi julgado até o presente momento.