2ª Parte - Capítulo IV
A REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1964

7. A evolução da posição dos militares

Apesar da conjuntura interna, em 1963, mais de oitenta por cento dos militares continuavam com sua postura legalista. Dos restantes, aproximadamente a metade fazia parte do dispositivo janguista ou concordava com suas posições e os demais eram ativistas da Revolução. Destes últimos, alguns, em especial os da reserva, haviam começado a atuar desde a posse de Jango, ligando-se, orientando e participando das organizações civis mencionadas neste capitulo. Outros, deixados sem função, começaram a conspirar nesse ano, como era o caso do então General-de-Exército Cordeiro de Faria. Como o movimento não engrenava no setor militar, onde o episódio da posse em 1961 ainda era um obstáculo decisivo, passaram a trabalhar suas idéias entre os civis. Seus contatos mais importantes seriam os governadores.

Em setembro, com o levante dos sargentos em Brasília, começou a haver uma mudança de posicionamento nas Forças Armadas. Pelo menos parte dos quadros começou a questionar-se sobre os acontecimentos.

No dia 4 de outubro, houve a tentativa frustrada da prisão do Governador da Guanabara e da decretação do estado de sítio. Os oficiais que se negaram a cumprir a ordem de prisão do Governador foram punidos. Sob o estímulo emocional dessas prisões, criou-se um grupo conspiratório. Liderado pelo então Coronel João Baptista de Figueiredo, esse grupo congregava a maioria dos oficiais da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e recebera a adesão dos Oficiais da Escola Superior de Guerra. Graças à confiança que esse grupo depositava no General Castela Branco, decidiram seus membros confiar suas apreensões ao Chefe do Estado-Maior do Exército. Aceito o contato reservado, o General Castelo Branco integrou-se de forma efetiva ao esquema revolucionário. Com ele viriam os oficiais generais a ele ligados, como Mamede, Malan, Ernesto Geisel e Golbery. Este último, havia algum tempo, era ligado ao IPES.

Esse grupo, que passaria a ter um importante papel no movimento revolucionário, elaborou um plano defensivo que visava a proteger as instituições e as próprias Forças Armadas contra a tentativa de tomada do poder pelas esquerdas. O plano baseava se nas seguintes premissas: resistir e estimular a resistência civil; dar ânimo aos políticos a se oporem às proposições esquerdizantes; e preparar a própria resistência militar. Essa conspiração de cúpula não afetaria, ainda, a disposição da grande maioria dos militares, que se mantinha fiel à Constituição.

Quando se tomou conhecimento da estrutura e da dinâmica do comício programado para o dia 13 de março, no Rio de Janeiro, que segundo o plano conhecido desencadearia o processo de tomada do poder, a conspiração tomou caráter ofensivo. Os contatos com os Grandes Comandos foram retomados com vistas a essa nova postura.

O Chefe do Estado-Maior do Exército e o comandante do II Exército já haviam apelado várias vezes ao Ministro para que não empenhasse o prestigio da Força no esquema janguista. No dia 13, porém, protegidos por tropas do Exército, estavam no palanque todas as facções do movimento revolucionário esquerdista. Do Sr. Leonel Brizola ao representante do CGT, do Governador Arraes ao presidente da UNE, prestigiados pela presença dos Ministros Militares. A partir desse momento, os conspiradores sabiam que o desfecho estava próximo.

Nesse comício, o Presidente atacou a Constituição, tachando-a de arcaica e obsoleta, enfraquecendo a posição daqueles que a defendiam como intocável. Enquanto o Presidente anunciava ter reduzido a termos a solicitação das reformas, o Sr. Leonel Brizola preconizava o fechamento do Congresso.

O comício do dia 13 resultou numa mudança no posicionamento da imprensa. Os editoriais passaram a exigir diretamente que os militares assumissem a responsabilidade de resolver a crise.
Começaram a surgir apelos ao papel constitucional dos militares para garantir os três poderes e não apenas o Executivo. Os editoriais pediam que os militares não apoiassem as ameaças às ordens partidas do Governo. O "Diário de Notícias", por exemplo, publicou em editorial: "É inegável que existem forças subversivas visando claramente uma tentativa de derrubar o regime e as instituições vigentes (...) Estas forças parecem ter cooptado o próprio Presidente e colocaram-se pela primeira vez à frente do processo subversivo de oposição à lei, ao regime e à Constituição. Se a autoridade suprema do Executivo se opões à Constituição, condena o regime e se recusa a obedecer às leis, ele automaticamente perde o direito de ser obedecido (...)".

O Ministro da Justiça de Jango escreveria mais tarde, referindo-se ao episódio: "O comício criou a expectativa de uma crise, de um golpe, rebeliões, tumultos, motins, ou subversão da ordem geral no País...".(4)

Apesar dessa situação, apesar dos insistentes apelos de Brizola para o aprestamento dos grupos dos onze, apesar das facções contrárias a Goulart dentro das Forças Armadas começarem a ser ouvidas, quando expressavam a necessidade de preparar-se para um contra-golpe, a maioria militar não estava ainda convencida da necessidade dela mesma participar da revolução.

No dia 19 de março, dia de São José, Padroeiro da Família, as mulheres de São Paulo realizaram um protesto contra o comício da Central do Brasil. Realizaram-se três reuniões preparatórias, à quais aderiram muitas entidades femininas e civis. Os cálculos mais otimistas previam o comparecimento de 130 mil pessoas, para suplantar, uma semana depois, a mobilização esquerdista da sexta-feira, 13.

No dia 19, atendendo a um apelo dos promotores desse evento, os cinemas não funcionaram e o comércio e a indústria suspenderam suas atividades às 15 horas. Às 16 horas começava a primeira "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Bandeiras brasileiras e paulistas apareceram em profusão. Papéis picados eram atirados dos edifícios. Gente, muita gente. Durante (ilegível) os manifestantes passaram marchando ombro a ombro, numa massa compacta que tomava toda a rua.

Veteranos jornalistas informam que nunca viram tão formidável concentração humana. Com certa timidez, a massa e estimada em 500 mil pessoas, outros estimam em 600 mil, mas, incluindo as ruas de acesso, é legitimo estimar-se em 800 mil.(5)

O desenvolvimento da crise atingia tal amplitude e era tanta a inquietação nas Forças Armadas que o General Castello Branco decidiu orientar os quadros, em instrução reservada de 20 de março, que se constituiu numa resposta ao comício do dia 13 e viria exercer forte impacto sobre os militares legalistas. Mas a ameaça do uso da força, implícita no apelo de Goulart, para instaurar a crise fora do sistema político, geraria outras reações. Muitos grupos civis começaram a armar-se. A arena passara da área política para a da violência.

A "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" foi outro impacto para os militares legalistas, e outras marchas começaram a ser realizadas com igual êxito em diversas capitais brasileiras.
A etapa decisiva para esses militares, tão importante ou mais que os fatos citados, seria o motim dos marinheiros e seu desfecho. Suas repercussões foram profundas, a tal ponto que abalaram as convicções não apenas dos militares legalistas mas até mesmo daqueles que até a véspera lutariam ao lado do Presidente e suas reformas. A autopreservação institucional, por meio do controle da disciplina era uma questão que estava acima dos (ilegível).

A sanção por Goulart, da indisciplina e da desordem, reverteu as posições. A revolução já poderia ser desencadeada sem que houvesse o risco da divisão interna nas Forças Armadas.


(4) Jurema, A: "sexta-feira 13", pag. 144 e 145

(5) Duarte, E.: "32 mais 32 igual a 64" - "Os idos de março e a queda de abril", José Álvaro, Editor, RJ, 1964, pág. 132 e 133.