3ª Parte - Capítulo I
1964

14. Pega ladrão!

O episódio narrado no item anterior está ligado a um dos processos mais utilizados na guerra revolucionária - a propaganda político-ideológica -, mas que, com a candura que nos e peculiar, nos recusamos a aceitar, pelo menos como um conjunto de ações deliberadamente montadas., Ao longo deste livro, teremos a oportunidade de ir revelando seus objetivos e técnicas. No momento, entretanto, ao invés de expormos teoricamente o problema, preferimos narrar um outro episódio acontecido tempos atrás no País. Neste caso, os propósitos e técnicas empregados ficam claros. Nele, evidencia-se a clássica manobra dos totalitários, que acusam de reacionários exatamente aqueles que percebem que têm medo de parecerem reacionários, ou melhor, utilizam a clássica saída do ladrão que grita "Pega ladrão!"

Tobias Warchavski, um jovem estudante de 17 anos, aluno da Escola Nacional de Belas Artes, alegre e comunicativo, tivera seu corpo encontrado, em outubro de 1934, em adiantado estado de decomposição, no morro dos Macacos, na floresta da Gávea, no Rio de Janeiro. A cabeça separada do corpo, despojado de todos os documentos e outros pertences que permitissem identificá-lo: o local ermo escolhido para o delito... Tudo indicava a ocorrência de um crime calculado e tecnicamente executado.

Recolhido o corpo ao Instituto Médico Legal, só em 19 de ,novembro sua família o encontrou. Tobias saíra de casa e residia com Walter Fernandes da Silva, sob os nomes supostos de Carlos Ferreira e Euclides Santos, respectivamente, e Walter nada comunicara à família do companheiro sobre o desaparecimento. Ambos eram comunistas. Walter, retraído e calculista; Tobias, bonachão e afoito, inclusive na propaganda da sua ideologia. Tobias foi reconhecido por sua mãe, Joana Warchavski, e seus irmãos, com o auxilio do cirurgião-dentista que o atendia. As precauções dos criminosos tornaram difícil, senão impossível, com os recursos da época, a elucidação do macabro assassínio.

De repente, como se tudo fosse espontâneo, em razão da revolta que crime despertara na população carioca, surge uma campanha, lançada em grande estilo, imputando ao Governo e à policia a culpa pelo crime. Quase imediatamente, pronuncia-se a Comissão Jurídica Internacional (CJI), de maneira rumorosa, em Paris (17).

Dando seguimento à campanha, no Brasil, foi fundada a Comissão Jurídica de Inquérito Popular, constituída na sua quase totalidade por juristas, jornalistas e intelectuais marxistas, impulsionados por Benigno Fernandes e Eneida da Costa, ambos militantes ativíssimos do Partido. Logo em seguida, a Comissão transformou-se na Associação Jurídica Bra.sileira, filiando-se à CJI.

Panfletos foram editados e reuniões foram promovidas, tratando do assunto, principalmente em sindicatos e faculdades. A tônica desses "atos humanitários" era sempre imputar responsabilidade ao Governo e à polícia e exigir suas providências. Na ocasião, o Partido Comunista - Seção Brasileira da Internacional Comunista dispunha de vários jornais. Além de vários semanários, fazia circular diariamente o "Jornal do Povo" e "A Manhã", que se tornou órgão da Aliança Nacional Libertadora. Outros jornais - como "A pátria" e "O Homem Livre" - eram "simpatizantes" e empenhavam-se a fundo na tarefa comum de acusar a polícia pela morte de Warchavski, no que eram seguidos, de forma mais moderada, pelos demais órgãos de imprensa. Além disso, cidade do Rio de Janeiro foi inundada por cartazes e volantes clamando por justiça, algo assim como "enquanto não houver justiça, não haverá paz".

Na Câmara dos Deputados, Álvaro Ventura, representante comunista, pronunciava discursos inflamados em que pedia a "elucidação do crime nefando", para ele cometido pela polícia contra o "jovem Tobias, de destacada atuação na Juventude Comunista e no Comitê Estudantil de Luta contra a Guerra (18).

Não faltou no caso sequer a contribuição dos humoristas. O bolchevista Aporelly criou o termo "tobianisar" - significando dar o mesmo destino do dado a Tobias Warchavski -, que muita gente, de boa fé, começou a empregar, na convicção de que, de fato, o pobre estudante tinha sido morto pela polícia.

Só a derrocada comunista em 1935 permitiu que a verdade surgisse clara e insofismável. Às inúmeras provas circunstanciais somaram-se as confissões dos componentes do Tribunal Vermelho, constituído por Honório de Freitas Guimarães, Pascácio Rio de Souza, Vicente Santos e Guilherme Macário Yolles (este, agente enviado do exterior para trabalhar junto ao Partido).

O Tribunal Vermelho, reunido em sessão de 17 de outubro de 1934, decidira que Tobias era traidor e responsável pela prisão de Adelino Deycola dos Santos, efetuada no dia 14 daquele mês. Yolles, que viera com a incumbência, entre outras, de impor a todos os membros do Partido uma férrea disciplina, propôs a "eliminação" de Tobias, aprovada por unanimidade.

O jovem que o Tribunal Vermelho condenara como traidor era agora herói, astuciosamente elevado às honras de mártir da liberdade. Yolles, que impusera essa morte por disciplina, como exemplo, mesmo sem ter elementos cabais que pudessem condenar o jovem Tobias, de fato falaz e expansivo, jactava-se agora, perante seus pares, de sua manobra de guerra psicopolítica. Do depoimento de "Miranda", secretário-geral do Partido à época do crime, anos mais tarde, consta que, por ocasião de uma reunião do Bureau Político, composto de onze pessoas, Yolles, membro da direção, disse ao declarante: O camarada Secretário vai estranhar bastante uma revelação que lhes vamos fazer para provar os êxito das campanhas do Partido, despistando sua responsabilidade no assassínio de Tobias, atribuindo à polícia, assim eliminando o provocador e desmoralizando o aparelho de repressão".

Lavrada a sentença, a 17 de outubro, e de imediato definidos os executores - Vicente Santos, Adolfo Barbosa Bastos e Walter Fernandes -, este último companheiro de quarto e amigo de Tobias, foi encarregado de atraí-lo ao local do assassinato. Chegando ao lugar escolhido, uma trilha íngreme, aberta por caçadores, em direção à Vista Chinesa, os fanáticos bolchevistas disseram ao jovem o motivo verdadeiro daquela tétrica reunião. O jovem deixou-se tomar pelo pânico. Falando com dificuldade, nervoso, quase não conseguia articular as palavras. Protestou, porém, sua completa inocência. Implorou, suplicou e, num gesto extremo, ante a inflexibilidade de seus verdugos, caiu de joelhos e pediu clemência. Jovem, ainda com 17 anos, alegre e bonachão, Tobias queria viver. Não resistindo, Walter Fernandes, que de todos era o mais constrangido,' interveio e tentou salvar a vida do amigo com quem convivera fraternalmente. Os outros permaneceram inflexíveis e Adolfo Barbosa detonou seu revólver: Tobias caiu fulminado. Seguiram-se, então, as providências para tornar senão impossível, difícil sua identificação.

Walter Fernandes com sua atitude em favor do amigo, tornara-se o ponto fraco da trama assassina. O Tribunal Vermelho decidiu que ele deveria afastar-se do Rio de Janeiro por uns tempos. Foi para Recife e, alguns dias apos a sua chegada à capital pernambucana, na praia do Pina, Walter Fernandes apareceu morto.


(17) A CJI é um órgão de fachada, fundada pela III Internacional, com sede em Paris.

(18) A Juventude Comunista foi criada pelo PCB em 1º/8/1927, para atuar no Movimento Estudantil. Filiou-se à Internacional da Juventude Comunista (URSS) em 1928. Desestruturou-se em 1935 e reorganizou-se em 1946. Desarticulada em 1964, está se estruturando desde 1984, para levar a atuação a todo o (ilegível) juvenil.