4ª Parte - Capítulo I
A ESTRATÉGIA GERAL

5. A fronteira incerta

Existia, como é fácil perceber, uma coincidência muito grande entre os objetivos buscados pelo Governo, os quais seriam os da sociedade brasileira e a maioria dos objetivos das organizações subversivas. Haviam pressões justas e legais no sentido de se promover a redemocratização e as organizaç6es subversivas jogavam uma partida fácil, pois exploravam o direito de discordar, inerente à própria democracia.

Essa coincidência fazia com que se entrasse na área que Jean François Revel chamou de - a fronteira incerta -, "a transição fácil entre o oponente leal, que faz uso de urna faculdade prevista pelas instituições e o adversário que viola essas mesmas instituições. O totalitarismo confunde o primeiro com o segundo, de maneira a justificar o esmagamento de toda a oposição; a democracia confunde o segundo com o primeiro, por medo de ser acusada de trair os seus próprios princípios".

Vivíamos exatamente nessa fronteira incerta, quando em decorrência das denúncias de Adauto Alves dos Santos, referidas no Cap XI da 3ª Parte deste trabalho, intensificaram-se as operações sobre as atividades do Partido Comunista Brasileiro, atingindo seu ápice em 1975, com o desmantelamento, no primeiro semestre de 1976, da CE/MG. Em São Paulo, na Guanabara, no Paraná, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, em Sergipe e na Bahia, haviam sido presos membros do Comitê Central, da Comissão Executiva e dos Comitês Estaduais dos Estados citados. Apesar da atividade subversiva dos comunistas presos, houve uma grande campanha em torno do episódio. A Amnesty International lançou um apelo urgente ao mundo (6). A Arquidiocese de São Paulo transformou-se no centro da campanha. Criou um Instrumento de ajuda humanitária à famílias de pessoas presas e desaparecidas. Com o estímulo do Cardeal Arns, a Arquidiocese criou a Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz, integrada por juristas do Estado. A comissão foi encarregada da defesa dos "perseguidos" e de mover ações civis contra as autoridades "em casos comprovados de tortura". (7). O principal objetivo do Cardeal Arns era estimular a população a resistir à "repressão violenta" de uma forma pacífica, mas firme... (8) (As aspas no corpo da citação são do autor).

As normas de terror, utilizadas principalmente pela ALN para amedrontar seus militantes e ao mesmo tempo denegrir a imagem dos órgãos de segurança, tinham continuidade agora no corpo da guerra psicopolítica e era difundidas visando a população em geral.

Neste contexto ocorre o lamentável, em todos os sentidos, suicídio do jornalista Wladimir Herzog nas dependências do DOI/CODI/II Ex.

No mês de outubro de 1975 o DOI/II Ex estava desenvolvendo investigações visando a desmantelar células do PCB no setor de comunicação social. Rodolfo Konder apontou o jornalista Herzog como militante do partido. Vladimir Herzog trabalhava na Rádio e TV Cultura de São Paulo, no período noturno, sendo Diretor-Responsável de Telejornalismo. No dia 24, Herzog foi convidado a prestar depoimentos no DOI/II Ex. O comandante do II Exército havia recomendado que se evitasse atrapalhar a vida profissional dos envolvidos, pelo menos até que suas implicações assim o exigissem. Não fora a proibição de ouvir pessoas após as 1800 horas Hezog poderia ter prestado esclarecimentos e ser liberado no próprio dia 24. Sua atuação era secundária.

No dia 25, as 0800 horas, Vladimir Herzog, acompanhado do jornalista Paulo Pereira Nunes, compareceu ao DOI, tendo Nunes sido informado que poderia procurar por ele por volta das 1600 horas, quando o jornalista já deveria estar liberado. Herzog inicialmente negou sua militância, mas confrontado com o próprio Rodolfo Konder e Jorge Jatahy Duque Estrada. acabou confessando os atos nos quais esteve envolvido, nenhum de maior importância. No entanto, revelou o nome de todos os militantes do PCB com os quais mantinha contato.

Após o almoço, devendo Herzog aguardar que seus depoimentos fossem datilografados, foi recolhido a uma cela especial no piso superior da dependência, tendo havido o cuidado - estabelecido nas normas de segurança - de substituir suas roupas, calçado, etc por um macacão de brim. Foi solicitado ao jornalista que nesse período fizesse uma declaração de próprio punho.

Por volta das 1600 horas, estando prontos os depoimentos, ao ser buscado o jornalista para assiná-los, foi constatado que o mesmo havia se enforcado, como ficou plenamente comprovado posteriormente nos laudos de necropsia e complementar, tendo antes do ato extremo rasgado a declaração que redigira.

Entregue à família, ao contrário de versões propositalmente deturpadas, nada lhe foi recomendado e muito menos determinado. O corpo de Herzog foi lavado e preparado pelo rabino de sua confissão religiosa que não constatou qualquer sevícia ou sinal de violência em seu corpo. A ação declaratória movida por sua família visou a indenização, por ter o ato sido cometido quando o nominado estava sob custódia e em dependência sob responsabilidade do II Exército (9).

No dia seguinte ao da morte de Herzog, o Cardeal Arns pediu oficialmente o apoio dos bispos presentes à Confer6ncia Regional dos Bispos em Itaici, são Paulo. A Conferência divulgou uma declaração formal, analisando a repressão em São Paulo e denunciando a morte do jornalista (10). Os bispos declaravam "sua total solidariedade com o sofrimento das vítimas", denunciavam a a negativa de habeas-corpus como grave violação dos direitos humanos e convocavam os cristãos a demonstrar sua solidariedade com as "vítimas" e famílias dos "perseguidos", reunindo-se em todas as catedrais e igrejas de São Paulo para os serviços religiosos em memória dos desaparecidos, dos que ainda sofrem em prisões e dos que morreram vitimados pela violência.

Apesar da "generalização brilhante", uma das técnicas mais usuais da guerra psicológica, o documento não foi refutado. A morte de Herzog constituiu-se no evento mais importante da campanha em desenvolvimento.

Os casos de suicídio d tentativas foram elevados, particularmente desses últimos, tendo sido grande parte abortadas graças as normas de segurança com que se buscava evitar a consumação do ato extremo contra a vida nas prisões. Se fôssemos relacionar todos os casos catalogados, além dos já apontados aleatoriamente neste trabalho, precisaríamos abrir um novo capítulo. Citaremos porém, dois casos, ambos ocorridos após 1975, o que mostra que as instruções que diziam "morrer é passividade, mas matar-se é ato" continuavam em vigor.

José Leite de Assis Fonseca, em 1970 passou a integrar o "Corpo de Apoio Revolucionário à Luta do Povo Brasileiro" em Paris. Constituído por ex-militantes de várias organizações terroristas brasileiras, tinha por finalidade retirar do Brasil elementos das esquerdas que estivessem desarticuladas e preparar quadros para posterior retorno ao pais. O grupo era formado basicamente por ex-militantes da ALN e do PC do B e alguns da VAR-P e MR-8. Leite esteve na França de 1968 a 1971.

Preso em julho de 1975, em Brasília, como militante do PCB, Leite em determinado dia, com um forte impulso bateu sua cabeça violentamente contra a parede da cela. Após atendido e indagado sobre o motivo desse ato de auto-flagelação, disse que, quando de sua estada em Paris, tomara conhecimento do caso de um "estudante" francês que, tendo sido preso durante as manifestações estudantis em 1960, suicidara-se na prisão, transformando-se em "herói" do movimento. Segundo Leite esse estudante para se matar, havia enfiado a cabeça na grade da cela e jogando o corpo para cima quebrara o pescoço. Por isso, tinha passado por sua cabeça também cometer suicídio e transformar-se em herói. É de imaginar o cuidado que foi necessário para evitar que Leite se transformasse, efetivamente, num "herói nacional".

O outro caso deu-se com uma militante do PC do B, presa em 1976, que por motivo de segurança, identificaremos apenas pelo nome de "Maria" (11). Esta foi encontra pelo carcereiro, encolhida a um canto de sua cela com o rosto todo arroxeado. Enquanto aguardava o médico, chamado com urgência, o carcereiro com auxílio de outros companheiros, adentrou sua cela e na tentativa de reanimá-la com massagens e respiração artificial, desabotoou a a gola de seu macacão, descobrindo então o artifício utilizado na tentativa de suicídio. "Maria" retirara a borda costurada do lençol e enrolara apertadamente em torno do pescoço, em sucessivas voltas e estava prestes a morrer sufocada. A determinação suicida não fora assinalada, a princípio, por ter a prisioneira abotoado e levantado a gola de sua vestimenta. Livrada do laço e ainda com a respiração entrecortada, "Maria" proferiu as suas primeiras palavras:
-Me deixa morrer, seu filho da p ...!!!

Além de tudo, ainda tinha-se que "pagear" esses energúmenos.

Entre nós, nesse período, a fronteira tornara-se mais incerta, na medida em que as próprias instituições seriam objeto de pretensos aperfeiçoamentos e a esse pretexto muitas leis em vigor deixavam de ser observadas. As entidades da chamada oposição organizada estavam infiltradas e vivíamos sob uma campanha psicológica que ia obtendo êxito crescente, graças à adequabilidade das técnicas utilizadas, principalmente a exploração psicológica de fatos apresentados como verdades irrefutáveis e ao uso de personalidades, como parlamentares, jornalistas e principalmente, clérigos, para dar prestígio e autenticidade às mensagens veiculadas.

Recorremos mais uma vez a J. François Revel, com o objetivo de salientar que não estamos imaginando coisas e que o problema não é especificamente nosso, mas um sub-produto da guerra psicológica, para a qual o Ocidente, como nos diz Suzanne Labin, continua nesse setor "cego, surdo e mudo" (12).

Diz Revel: "Acaba-se por chegar, a esta situação invertida que vivemos todo dia nesta sociedade que chamamos, por convenção, o Ocidente, situação em que querem destruir a democracia parecem lutar por reivindicações ilegítimas, enquanto os que querem defendê-la são apresentadas como artífices de uma repressão reacionária. a identificação dos adversários, internos e externos, da democracia com forças progressistas, legítimas e, o que é pior, com forças de "paz" tende a desconsiderar e a paralisar a ação dos homens que tão somente querem preservar suas instituições." (13).


(6) The Anmesty International Review 1975-1976 - "Brasil" Pg 90-92

(7) Nesta época, ao invés dos generais do povo da ... tentativa de tomada do poder, apareciam os "cardeais do povo". Ver entrevista de Don Paulo Evaristo Arns, em História Imediata, nº 4 - Don Paulo Evaristo Arns; o cardeal do povo.

(8) Ver Alves: Maria Helena Moreira - em "Estado e Oposição no Brasil (1964/1984)" - editora Vozes - Petrópolis - 1984 - Pg 203 e seguinte.

(9) Ação Declaratória: Aquela em que mediante simples declaração, sem forma executória, o juiz proclama a existência ou inexistência de uma relação jurídica ou a (...ilegível...) ou autenticidade de um documento.

(10) Nessa época o AI-5 estava em pleno vigor e não havia ainda sido restabelecida a concessão do "habeas-corpus" nos casos de crimes políticos.

(11) "Maria" e seu amásio revelaram dados que permitiriam a realização de uma importante operação e sua identificação poderia colocar em risco a integridade física de ambos. Seu nome consta dos originais deste trabalho.

(12) Suzanne Labin é autora de "Em cima da hora" - Ob. já citada

(13) Acrescentaríamos apenas que não se identificam apenas com as forças de paz mas a todos os temas englobados nos direitos humanos.