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Fonte: Link / Estadão
[05/11/13]
Marco
Civil: ‘Preservar coerência é importante’ - por Murilo Roncolato [Entrevista
com Carlos Affonso de Souza]
Entrevista com Carlos Affonso de Souza, professor da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)
SÃO PAULO – O projeto de lei nº 2126/2011, o chamado Marco Civil da Internet,
foi adiado nesta terça-feira, 29, pela primeira vez após o Executivo ter
colocado sua tramitação sob regime de urgência (embora no total, o projeto já
tenha sido formalmente adiado cinco vezes). O prazo, no dia 28 de outubro,
estourou, o que fez com que o adiamento da votação trancasse a pauta da Câmara.
Isso significa que enquanto não for votado, não se vota mais nada. O texto
recebe sugestões de mudanças há quatros anos, sendo entre 2009 e 2011 pela
sociedade civil interessada através de consultas públicas; e nos dois últimos
anos, por parlamentares.
Nesta reta final, mais alterações estão previstas e ambos os lados sabem que a
briga será das grandes. Até lá, publicaremos no site do Link entrevistas com
pessoas influentes sobre o assunto e envolvidos diretamente nas discussões. Na
terceira entrevista da série, conversamos com Carlos Affonso de Souza, professor
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diretor do Instituto de
Tecnologia e Sociedade (ITS) e ex-pesquisador do Centro de Tecnologia e
Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (CTS-RJ), onde as bases
do Marco Civil foram desenhadas em 2009. Depois de lá, o texto foi colocado sob
consulta pública antes de finalmente ir para o Congresso em forma de projeto de
lei, em 2011.
Confira a entrevista:
O governo defende obrigar provedores de conteúdo a guardar dados sobre
brasileiros em território nacional. Com o senhor avalia a proposta? Ela deve
estar no Marco Civil?
O armazenamento forçado de dados pessoais de brasileiros no País não figurou na
consulta pública sobre o Marco Civil. É claro que o processo que se iniciou com
a consulta na rede e que hoje chega na etapa de votação na Câmara submete o
texto às mais variadas transformações de acordo com a evolução dos debates, mas
seria importante manter coerência com o que vem sendo debatido desde 2009 e não
aprovar redações de afogadilho.
Carlos Affonso Pereira de Souza. FOTO: Julia Moraes/Reprodução/Fiesp
Os impactos dessa medida, como a criação de datacenters e o aprimoramento da
infraestrutura técnica, são muito bem-vindos, mas é importante refletir sobre se
a inserção desse texto no Marco Civil seria a melhor forma de se alcançar esse
resultado. Existem, inclusive, outros processos em andamento que poderiam atuar
como fóruns mais adequados para se avançar essa discussão, como a própria Lei
Geral sobre Dados Pessoais no Brasil, a ser proposta pelo Poder Executivo como
uma segunda etapa de consulta já realizada na internet.
Vale lembrar que existem desafios tanto tecnológicos como jurídicos que precisam
ser analisados sobre essa medida, como: (i) a questão da territorialidade (como
garantir que a pessoa está no Brasil? E se o brasileiro se conecta via VPNs ou
Tor, começando a conexão no Brasil e saindo em outro país?); (ii) da
reciprocidade (e se os outros países começarem a exigir o mesmo de empresas
brasileiras operando no exterior?); (iii) o impacto no grau de inovação, além de
(iv) incentivar o movimento de fragmentação da rede, com a adoção de leis que
dificultam a interoperabilidade na internet, e (v) forçar o armazenamento de
dados em país que ainda precisa fazer o dever de casa no que diz respeito à
aprovação de uma lei geral sobre dados pessoais que avance essa tutela para
padrões compatíveis com as necessidades de proteção dos usuários na rede.
Vê alguma contradição em o governo defender a governança multissetorial (multistakeholder)
e a neutralidade lá fora enquanto por aqui o CGI foi retirado do texto do Marco
Civil, e o princípio da neutralidade ainda não foi aprovado?
De nada adianta defender a governança multissetorial no exterior e não aprovar
um Marco Civil condizente no cenário interno, que tutele a neutralidade da rede,
conforme defendido pela Presidente Dilma em seu discurso na Assembléia Geral das
Nações Unidas, e prestigie o debate diverso realizado desde 2009. Por vezes,
pode ser difícil encontrar um discurso que seja absolutamente coerente dentre as
mais diversas instâncias de representação governamental, mas no presente momento
o Brasil parece levar a fóruns internacionais um direcionamento que é
compartilhado por todas essas instâncias. Essa afinação do discurso é
fundamental se o País quiser efetivamente liderar o debate sobre governança da
rede, pois dois dos mais óbvios pontos fracos nessa estratégia seriam a
indicação de contrariedades entre posicionamentos de diversas instâncias de
representação governamental (levando os demais países a se perguntar qual seria
efetivamente a proposta brasileira) e não adoção domesticamente do que se prega
lá fora.
Como vê a aproximação do ICANN com o Brasil? O debate sobre governança
interfere de que maneira no Marco Civil?
O Brasil tem historicamente uma participação muito destacada nos fóruns de
governança e regulação da internet, desde a Cúpula Mundial para a Sociedade da
Informação, passando pelos encontros da própria ICANN e do Internet Governance
Forum (IGF), da ONU. Em um cenário em que se debate o melhor modelo para a
governança da rede, a defesa do chamado modelo multistakeholder (multissetorial)
se tornou quase um mantra. Contudo, existem ainda poucas pesquisas e reflexões
sobre experiências práticas que possam criar estratégias e recomendações sobre
como esse modelo deve ser implementado, tanto nacional como internacionalmente.
Nesse cenário, o Brasil se destaca por ter um corpo multissetorial atuante como
o Comitê Gestor da Internet por mais de uma década e atrai a atenção de outros
países e entidades internacionais. Mas mesmo no Brasil os impactos de se ter um
órgão multissetorial para a governança da rede ainda estão longe de ser
amplamente mapeados, embora já existam estudos sobre experiências práticas em
que esse caráter multissetorial foi testado, como a adoção dos “Princípios para
a Governança e Uso da Internet no Brasil” e o processo de gerência da Porta 25/TCP,
que levou à redução drástica do volume de spam enviado a partir de computadores
localizados no País.
Acredita que alguma alteração possa ser feita nos artigos nono, 13º e 15º?
Os pontos mais discutidos são mesmo neutralidade da rede (nono),
responsabilidade de provedores (15º) e a chamada localização forçada de dados
pessoais no País (15º). Mas a forma pela qual esse debate se espalha no Marco
Civil pode fazer com que emendas sejam apresentadas de forma direcionada a um
outro artigo, mas tendo por objetivo, por exemplo, alterar a dinâmica da
neutralidade da rede. Modificações sobre o conceito de usuário, seus direitos ou
mesmo a inserção de provisão sobre “franquia de dados” fora do artigo nono (que
trata de neutralidade) são alguns exemplos de novidades que poderiam aparecer e
alterar sensivelmente a lógica do Marco Civil.
Tirar a questão dos direitos autorais do artigo 15º, deixando-o para ser
regulamentado pela Lei de Direitos Autorais (LDA), pode gerar tratamento
diferenciado e assim ferir o princípio da isonomia?
A existência de dois regimes jurídicos distintos para a tutela dos direitos
autorais e de outros direitos na internet não seria uma inovação brasileira,
caso o Marco Civil seja aprovado dessa forma. Nos Estados Unidos, convivem os
dispositivos do Communications Decency Act (“CDA”, que trata da responsabilidade
de provedores de forma geral) e do Digital Millenium Copyright Act (DMCA, que
trata especificamente de direitos autorais). No modelo norte-americano, o CDA
cria um regime de isenções para os provedores no que diz respeito à
possibilidade de ser responsabilizado por conteúdo de terceiro. Já o DMCA
estabelece um regime de notificação e retirada (“notice and takedown”) de
conteúdos que infrinjam direitos autorais.
Uma das justificativas encontradas para a existência de dois sistemas, sem levar
em consideração os fatores políticos que levaram à adoção das duas leis, é uma
eventual objetividade na apreciação do que é violação de direitos autorais na
internet, inclusive com o desenvolvimento de ferramentas que conseguem
identificar o conteúdo protegido e de forma automatizada promover a requisição
de sua retirada. Essa justificativa é procedente para um grande número de casos,
mas é importante destacar que a pretensa objetividade na análise da infração aos
direitos autorais cede espaço a questões realmente complexas quando se discute
se determinado uso da obra estaria ou não contemplado no regime de exceções e
limitações do direito autoral (atualmente previstos nos artigos 46 e seguintes
da LDA). Trata-se aqui de casos como o uso de pequenos trechos obra alheia, além
do eventual conflito em nível principiológico que pode existir entre a tutela
autoral e outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e acesso
ao conhecimento.
Por isso mesmo se debate hoje qual seria o modelo a ser adotado pela LDA. Os
defensores de um outro modelo que não a notificação e retirada apontam
justamente o tratamento uniforme que se daria a casos complexos, sendo mesmo
considerada a adoção de um sistema de notice and notice (“notificação e
notificação”), inspirado no modelo canadense. Não se trata, vale dizer, de uma
questão de superioridade em princípio de direitos autorais sobre demais
direitos, mas sim a tentativa de se obter uma tutela jurídica que possa melhor
atender as peculiaridades de cada espécie de dano. No aspecto penal, vale
lembrar, já existe um procedimento expedito para a retirada de conteúdos de
pornografia infantil, justamente por ser entender a extrema gravidade desse
conteúdo.
Há críticas sobre o artigo 15º que dizem que ele fere princípios e dá
atendimento especial aos provedores de conteúdo.
Não me parece que o Marco Civil esteja isentando provedores de responder por
danos causados. Em se tratando de atos próprios, quando é o provedor o autor
direto do dano, ele é inteiramente responsável pelo conteúdo por ele mesmo
gerado. O artigo 15 do Marco Civil, por sua vez, trata especificamente dos casos
em que o conteúdo é gerado por terceiro. Aqui se optou por demarcar a decisão
judicial como o fator determinante para que o provedor venha a responder caso
não retire um conteúdo quando ordenado pela decisão. Isso não impede o conteúdo
de sair do ar nem o provedor de agir para retirar o conteúdo. O que o Marco
Civil determina é apenas o momento a partir do qual o provedor seria
responsabilizado.
A outra opção geralmente aventada, de tornar o provedor responsável caso não
retire o conteúdo quando notificado de sua existência pela vítima, se por um
lado atende à velocidade que se procura alcançar para danos que se multiplicam e
disseminam de forma rápida na rede, por outro estimula um regime de constante
censura privada. Recebendo a notificação, independentemente de sua procedência,
o conteúdo seria removido para se evitar a responsabilização e consequentemente
teríamos uma internet menos diversa e cada vez mais sujeita aos controles
privados sobre a expressão alheia, seja por motivos mais nobres como a ofensa à
honra e à privacidade, seja por questões pessoais como a não aceitação de
opiniões contrárias, críticas e demais conteúdos que possam não agradar uma
determinada pessoa ou grupo de pessoas. Nessa direção, o que faz o Marco Civil é
procurar preservar o direito constitucional à liberdade de expressão, impedindo
que se instale um sistema de caça desenfreada aos conteúdos postados na rede,
sem qualquer critério ou restrição legal.
Ao mesmo tempo, criar mecanismos que possam incentivar que a pessoa que fez o
upload do vídeo ou da foto, ou inseriu o texto pretensamente lesivo, seja
responsabilizada por seus atos é uma medida salutar. Se por um lado parece ser
mais fácil reconhecer o provedor como responsável e focalizar o ônus nessas
empresas, é importante destacar o papel que os provedores exercem como
instrumentos para potencializar a expressão na rede. O resultado de uma
responsabilização em massa de provedores certamente não é o resultado ideal para
quem busca preservar a internet como o meio de expressão rico que ela hoje
representa.
Por isso, não existe inconstitucionalidade em se garantir que o provedor apenas
seja responsabilizado caso não cumpra ordem judicial. Todavia, é igualmente
importante que se desenvolvam mecanismos que permitam que o responsável direto
pelo dano causado possa ser identificado e responsabilizado, sempre respeitando
a privacidade dos usuários e procurando compreender como os diversos direitos
fundamentais podem colidir e devem ser ponderados.
As mudanças feitas no texto comprometem princípios do texto, como o da
liberdade da internet? Leis já aprovadas terão de ser revistas caso o Marco
Civil seja aprovado?
Quando se fala sobre liberdade na internet é preciso que se compreenda que
livre, nesse sentido, não significa a ausência de leis. Muito pelo contrário, a
liberdade é hoje garantida na rede justamente pela aprovação de leis que possam
tutelar espaços para que os mais diversos direitos fundamentais possam ser
exercidos da forma mais plena, aproveitando muitas das características de
abertura da rede. O Marco Civil foi pensado como uma lei predominantemente
principiológica, que não adentraria em maiores detalhes regulamentares e nem se
preocuparia em descrever condutas e suas implicações. Na medida do possível,
esse desenho foi preservado, mas é natural que as discussões típicas do trâmite
legislativo tenham feito surgir sobre o texto original as sombras dos mais
diversos interesses que estão relacionados com as atividades desenvolvidas na
internet.
Temos sempre lembrado que o Marco Civil foi um experimento. Em 2009, ele
representou a primeira tentativa do Brasil em inserir a internet como elemento
radicalizante do componente democrático do processo legislativo. De lá para cá,
tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo, têm avançado nesse debate e
produzido novas iniciativas. Ainda há muito para se aprender e desenvolver sobre
como incentivar uma participação cada vez mais diversa, como identificar
consensos e divergências em determinadas questões, como decidir e informar
adequadamente aos participantes as razões para adoção de um posicionamento e não
de outro.
Por isso o Marco Civil, se aprovado, certamente não será exatamente o mesmo
texto resultante da consulta pública, mas existe espaço para o Brasil avançar e
ser conhecido internacionalmente não apenas por ter saído na frente e produzido
esse tipo de consulta, mas também para liderar os estudos que possam buscar um
aperfeiçoamento metodológico constante de suas ferramentas. No futuro, quem
sabe, teremos até mesmo sugestões de alterações regimentais que possam conferir
às leis resultantes de consultas tão amplas como essa alguma forma de fazer com
que elas cheguem ao Congresso com as marcas de revisão da coletividade,
desafiando, nem que seja em nível argumentativo, as tentativas de sua revisão.