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Fonte: Band / Colunas
[24/04/14]
Temos um Marco Civil. E agora? - por Mariana Mazza
A presidente Dilma Rousseff conseguiu o que queria. Fez bonito sancionando o
Marco Civil da Internet na abertura do evento NETmundial perante representantes
de mais de 90 países. Dilma ainda aproveitou o momento para frisar a importância
de o texto ter passado pelo Congresso Nacional mantendo o princípio da
neutralidade de redes, que proíbe as companhias provedoras de acesso à Internet
de discriminar os internautas com base no tipo de conteúdo buscado na rede. Tudo
muito bom, tudo muito bem.
Agora é necessário ficar de olho na regulamentação do Marco Civil. Uma lei como
esta só se torna efetiva graças a uma série de regras que são escritas após a
sanção. O conjunto dessas regras se chama regulamentação. E é ai que a coisa
pode começar a se complicar.
Como base legal, o Marco Civil é um tremendo avanço na defesa dos direitos
humanos e dos consumidores no ambiente da Internet. Mas de nada vale tudo isso
se o governo aproveitar as brechas na lei - sim, porque se tem uma coisa que não
conheço é uma lei sem brechas - para reverter os efeitos positivos do Marco
Civil.
O ringue desta disputa já está definido: a Anatel. Lembre-se, caro leitor, que o
cabo de guerra entre o Palácio do Planalto e a base aliada do governo - que
bloqueou a última etapa da votação na Câmara dos Deputados - só teve fim depois
de ser incluído no Marco Civil a exigência de que a agência reguladora seja
consultada pela Presidência da República antes que esta dê continuidade à
regulamentação da nova lei. É bom que fique somente na consulta mesmo.
Dentro da Anatel a articulação para o nobre trabalho de aconselhamento da
presidente Dilma já começou. E os nomes que têm circulado para formar o núcleo
que conduzirá o trabalho não são nada animadores para quem ainda teme que a
neutralidade não veja a luz do dia. É sempre bom lembrar que a Anatel passou os
últimos anos defendendo uma visão bastante flexível da neutralidade. Essa
posição foi exposta, inclusive, em fóruns mundiais, como as últimas reuniões
promovidas pela União Internacional de Telecomunicações (UIT). Para a agência,
discriminar um pouquinho não afeta a neutralidade. Não preciso nem dizer que
esta ideia agrada bastante as empresas de telecomunicações.
A fumaça da interpretação flexível da neutralidade se espalha pelo mundo há
algum tempo. E, coincidentemente no mesmo dia em que Dilma assinava nosso Marco
Civil, um dos focos do incêndio aumentou. Na mesma terça-feira, 23, a Federal
Communications Commission (FCC) - a Anatel norte-americana - divulgou que irá
propor novas regras que permitam que empresas como Google, Netflix e Disney
paguem a operadoras de telecomunicações como a Verizon e a Comcast por serviços
especiais que garantam maior velocidade de acesso dos internautas a seus
produtos. É a destruição da neutralidade pela via positiva.
Primeiro permitimos o tratamento diferenciado para o "benefício" do consumidor e
logo depois não teremos como impedir a discriminação claramente nociva, que
impedirá o acesso a qualquer serviço ou produto na web com o mínimo de
qualidade. Qualidade, só para quem tiver bastante dinheiro para compra-la. É ai
que habita o perigo de uma regulamentação mal feita. Apesar de o Marco Civil
prever a neutralidade como uma garantia de direitos na rede, tudo pode ir abaixo
se adotarmos a mesma linha defendida pela FCC.
Logo após a aprovação do Marco Civil pela Câmara dos Deputados choveu críticas à
imperfeição do projeto. Continuo acreditando que a lei terminou sua tramitação
melhor do que o esperado. Concordo que seria ainda mais útil à sociedade se
nossos parlamentares tivessem tido a coragem de definir de forma mais clara o
cumprimento do princípio da neutralidade e que havia espaço para o
aperfeiçoamento em outras questões. Mas depois de dois anos de briga, ainda
assim me parece melhor ter um Marco Civil imperfeito do que não ter nada.
A pressa da agenda política acabou com qualquer chance de o Senado Federal
rediscutir o texto, para o bem ou para o mal. Afinal, é bem óbvio que a
aprovação em tempo recorde pelos senadores se deu apenas para que a presidente
Dilma pudesse sancionar a nova lei na NETmundial, como prometido.
Os riscos de o Marco Civil ser destruído (ou esquecido) após o furor do debate
só existem de fato se a Presidência da República confessar que tudo não passava
mesmo de jogo político para ficar com uma boa imagem na comunidade
internacional, especialmente depois das denúncias de espionagem pelos Estados
Unidos que vitimaram políticos e empresas brasileiras. Se a presidente Dilma
Rousseff está realmente engajada em proteger os direitos dos brasileiros na
Internet, a regulamentação do Marco Civil respeitará a filosofia livre e não
discriminatória que pautou a lei. Mas é bom a sociedade não dormir no ponto.
Ainda há muito espaço para que o Marco Civil passe de sonho a pesadelo.