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Leia na Fonte: Observatório da Imprensa
[30/05/14]
Inconstitucionalidade do Marco da Internet
- por Guilherme Magalhães Martins
Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça do Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro, professor adjunto de direito civil da UFRJ, diretor do
Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor e doutor e mestre em
direito civil pela UERJ.
No dia 22 de abril, a presidenta Dilma Rousseff sancionou simbolicamente,
durante o fórum NET Mundial, em São Paulo, o Marco Civil da Internet no Brasil,
aprovado na véspera pelo Plenário do Senado Federal. No dia seguinte, foi
publicado no Diário Oficial da União o novo texto de lei, agora transformado em
Lei nº 12.965, de 23 de abril. Apresentado à população como a “Constituição da
Internet”, o Marco Civil traz mais problemas do que soluções. Seu conteúdo,
basicamente, se sustenta em três pilares: a neutralidade da rede, a privacidade
e a liberdade de expressão.
O Marco Civil da Internet abrange vários pontos polêmicos, em especial o seu
artigo 19, que prevê que o provedor de aplicações da internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado,
tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Assim, em plena era
dos meios alternativos de solução de conflitos, como a mediação e a arbitragem,
o Marco Civil judicializa questões que já se encontravam resolvidas através de
outros instrumentos mais ágeis, como os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs).
Tal dispositivo cria obstáculos aos termos de ajustamento de conduta firmados
entre os principais provedores e o Ministério Público Federal e os Ministérios
Públicos de diversos Estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, possibilitando o
livre acesso às informações acerca dos usuários para fins de persecução
criminal.
Trata-se de uma tentativa de imunizar os provedores, mas sem discriminar
claramente quais as modalidades de prestadores de serviços da internet seriam
abrangidos por tal regra (de conteúdo, de hospedagem, ou de backbone), que vai
de encontro aos meios alternativos de solução de conflitos, como a arbitragem e
a mediação. Ao optar pela via judicial, diferentemente da redação original
contida no artigo 20, que exigia somente a necessidade de notificação
administrativa pelo ofendido, a lei recém-promulgada impõe mais um ônus à
vítima, que agora precisa provocar o Judiciário para requerer a retirada do
conteúdo ofensivo, além de provocar o aumento da extensão do dano, uma vez que o
mesmo ficará mais tempo disponível na rede.
Interesses da indústria
O projeto ameaça conquistas alcançadas de maneira gradual, em detrimento do
interesse público, especialmente em matéria de responsabilização dos provedores,
onde se visualizam hoje os maiores problemas decorrentes dos vícios e acidentes
de consumo nas redes sociais virtuais, sobretudo haja vista a abrangência da
norma do artigo 17 da Lei nº 8078, de 1990, que equipara aos consumidores todas
as vítimas do evento (bystanders). Além disso, tal regra parece contradizer um
dos fundamentos da própria lei, que é a defesa do consumidor, prevista no artigo
2º, V.
Espelhando uma ótica patrimonialista, o legislador demonstra preocupação apenas
com as infrações a direitos autorais ou direitos conexos, que, na forma do
artigo 19, parágrafo segundo, tem o requisito da ordem judicial condicionado a
previsão legal específica.
Nesse ponto, o Marco Civil, paradoxalmente, consagra a prevalência das situações
patrimoniais sobre as existenciais, caso em que a responsabilidade do provedor
em face das vítimas depende de uma prévia notificação judicial, o que não se
aplica, portanto, ao titular do direito autoral. Conferir aos interesses da
indústria cultural, em função da titularidade dos direitos patrimoniais do autor
(copyright) em face das vítimas de danos sofridos através das ferramentas de
comunicação da internet, como as redes sociais, significa inverter os valores
fundamentais contidos na tábua axiológica da Constituição da República.
Portanto, o artigo 19, parágrafo segundo do Marco Civil é eivado de
inconstitucionalidade material, por afrontar a dignidade da pessoa humana,
eleita como princípio fundamental da República Federativa do Brasil no artigo
1º, IV, da Constituição da República, em nome da exaltação de uma liberdade de
expressão que não pode ser absoluta.
Em que pese a necessidade imperiosa de uma lei para assegurar os direitos e
deveres para o uso da internet no Brasil seja duvidosa, não se pode refutar que
em um ordenamento de matriz positivista, uma lei com regras específicas sobre a
disciplina da internet é bem-vinda, sobretudo para pacificar conflitos que
aumentam exponencialmente no ambiente da internet. No entanto, a população não
tem muito o que comemorar, porque, a pretexto de instituir direitos já previstos
em sede constitucional, a iniciativa do Marco Civil atende primordialmente ao
interesse da indústria ligada ao setor da internet e do entretenimento, e trará
novos conflitos a serem levados ao Judiciário.