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Fonte: Band / Colunas
[25/03/14]
A sociedade venceu - por Mariana Mazza
Algo muito parecido com um milagre aconteceu na noite desta terça-feira, 25 de
março de 2014. Depois de mais de dois anos de intensas discussões políticas, a
Câmara dos Deputados aprovou o Marco Civil da Internet. Um grande acordo entre
os líderes partidários garantiu, inclusive, a permanência do princípio da
neutralidade de redes no texto, tal qual redigido pelo deputado relator
Alessandro Molon (PT/RJ). Ai está o início do milagre, mas ainda tem mais. Os
ajustes feitos no texto do Marco Civil para garantir a votação acabaram
melhorando o projeto, completando o cenário inimaginável poucos dias atrás.
Há várias lições a aprender dessa árdua batalha que se travou entre os deputados
para concluir a votação do Marco Civil. A mais óbvia delas é compreender como a
dinâmica política pode influenciar de forma negativa ou positiva o debate em
torno de uma nova lei. Em muitos momentos, a disputa entre o governo federal e
sua base aliada na Câmara colocou em risco a construção de um texto favorável à
sociedade. Em função de questões que fugiam completamente ao conteúdo do Marco
Civil, deputados de diversos partidos ameaçaram mutilar o projeto, abrindo a
possibilidade de aprovar uma lei que prejudicaria a sociedade como retaliação à
falta de diálogo com os representantes do Poder Executivo.
As concessões feitas, de ambos os lados aliás, salvaram a nova lei. Pelo menos
por enquanto, já que uma nova batalha ainda pode ser travada no Senado Federal.
Mas não deixa de ser interessante reparar na votação de hoje como as vozes
contra a neutralidade foram suavizadas. Quem vociferava contra o princípio que
impede as empresas de discriminar os usuários da Internet pelo tipo de conteúdo
a ser acessado subiu à tribuna para se dizer favorável à neutralidade. É como se
a polêmica que atrasou a votação por anos e trancou a pauta da Câmara dos
Deputados por cinco meses nunca tivesse existido.
Mas a maior lição a ser aprendida é que a sociedade tem mais força do que
imagina. É inegável a influência que os movimentos sociais tiveram no desfecho
positivo da votação do Marco Civil. Apostando no esclarecimento dos deputados
como forma de contrabalancear a pressão dos lobbys tradicionais que fluem no
Congresso, os representantes da sociedade conseguiram abrir um real canal de
discussão com os parlamentares e contribuir de fato com a construção de um Marco
Civil que preservasse os três pilares da nova era das comunicações: a
neutralidade, a liberdade de expressão e a privacidade.
Pouco antes da votação, esses movimentos sociais entregaram à presidência da
Câmara uma petição pública com mais de 350 mil assinaturas pedindo pela
aprovação do Marco Civil, resultado da campanha que teve como garoto propaganda
o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. Mas, para além desse gesto simbólico da
vontade popular de ter uma regulamentação que preservasse os direitos civis na
Internet, a resiliência desses movimentos em manter o diálogo apesar das
pressões para corromper o Marco Civil ajudou muito na construção da aprovação
desse projeto.
O deputado Alessandro Molon também se mostrou um ás no quesito paciência. Em um
setor onde muitos projetos morreram na gaveta da mesa diretora da Câmara, o
relator do Marco Civil estabeleceu um novo parâmetro de perseverança. Acho que
nem o próprio Molon acreditava em uma aprovação tão imponente quanto a que
ocorreu nesta noite. Apenas o PPS foi contrário ao projeto, por ser contra a
regulamentação da nova lei pela Presidência da República.
Às teles sobrou um prêmio de consolação. Incapazes de apagar a neutralidade do
mapa da história, conseguiram apenas que a Anatel seja consultada antes de a
Presidência da República regulamentar por decreto as exceções ao cumprimento da
neutralidade. Desde o início dos debates, a agência reguladora tem uma leitura
bastante flexível sobre o conceito da neutralidade, que vai ao encontro dos
interesses das empresas de telecomunicações. Sendo assim, incluir a Anatel no
texto é claramente um aceno às teles. Mas foi uma vitória de Pirro, já que a
agência será apenas "consultada", assim como o Comitê Gestor da Internet no
Brasil (CGI.br), que tem sido um forte opositor da agência neste item.
É sempre bom relembrar alguns detalhes históricos para se compreender um pouco
melhor a esquizofrenia que por vezes atinge os debates políticos. A primeira
polêmica que paralisou o Marco Civil não envolvia o núcleo da neutralidade, mas
justamente a eventual colaboração do CGI.br na regulamentação deste item. Ou
seja, a emenda salvadora da votação do Marco Civil nada mais é do que a
recomposição do texto original do projeto.
A redação do Marco Civil aprovada hoje também tem um fator pedagógico no que diz
respeito às confusões entre a regulação e a regulamentação, recorrentes no
Brasil. Pela Constituição Federal, cabe à Presidência da República regulamentar,
por decreto, as leis. Regulamentar é detalhar como a lei será cumprida. Isso é
feito por decreto para não engessar a lei com regras que podem precisar de
atualização ao longo dos anos.
Às agências reguladoras, sempre chamadas a realizar este papel exclusivo do
presidente do país, cabe apenas regular, ou seja, criar regras que organizem o
mercado em que o serviço é prestado. O texto do Marco Civil aprovado relembra
essa simples regrinha da Constituição: agências não foram feitas para usurpar o
direito exclusivo dos presidentes eleitos de regulamentar as leis.
O Marco Civil ainda terá que passar pelo crivo do Senado Federal antes de entrar
em vigor. Uma nova batalha pode ter início, mas o desgaste sofrido pelo texto na
Câmara dos Deputados agora terá um efeito favorável. Depois de tantas lutas
travadas no campo político, o Marco Civil chegará endurecido pelas batalhas às
mãos dos senadores, tornando mais difícil uma modificação drástica no projeto.
No fim, a sensação dos que defenderam o projeto é que valeu esperar e ter
esperança de que o Brasil, pode sim, ser pioneiro em uma discussão tão
importante e abrir caminho para a defesa de uma Internet livre e democrática.