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Fonte: O Estado de S.Paulo
[27/03/14]
Passa a 'Carta da Internet' - Editorial
Os provedores de acesso à internet terão de oferecer a todos os usuários a mesma
velocidade de conexão, cobrando deles o mesmo preço, qualquer que seja o
conteúdo acessado. É o princípio da neutralidade da rede. As exceções - em razão
de requisitos técnicos ou para privilegiar serviços de emergência - serão
regulamentadas por decreto presidencial, ouvidos a Anatel e o Comitê Gestor da
Internet, com base no artigo 84 da Constituição, para que se limite à "fiel
execução da lei". Essa é a mais auspiciosa norma do Marco Civil da Internet, que
define os direitos e deveres dos participantes do sistema - empresas de
telecomunicação, fornecedores de conteúdo, internautas e governo.
A "Carta da Internet" foi aprovada anteontem à noite por aclamação na Câmara dos
Deputados, depois de dois anos e meio de debates, manobras e conflitos de
interesses, e cinco meses depois de bloquear a votação de outros projetos na
Casa. A proposta, de iniciativa do Planalto, depende agora da aprovação do
Senado. A presidente Dilma Rousseff espera poder sancionar a lei antes de 23 de
abril, quando começará em São Paulo uma conferência internacional sobre
governança na rede. Para o relator da proposição, deputado Alessandro Molon, do
PT do Rio de Janeiro, ela "assegura a liberdade que o usuário já tem na rede" e
"consolida a posição do Brasil nesse campo".
De fato, um dos primeiros defensores estrangeiros da proposta foi ninguém menos
que o físico britânico Tim Berners-Lee, o inventor da rede mundial de
computadores (www). Outro ponto crucial do texto aprovado é o que restringe a
responsabilidade dos provedores pela publicação de material de autoria de
terceiros a casos de descumprimento de ordem judicial para a sua retirada. É um
ganho para a liberdade de expressão, ao afastar o risco de os provedores se
transformarem em censores privados da produção alheia. A regra só não se
aplicará, felizmente, à divulgação de material pornográfico que exponha a
intimidade de terceiros sem a sua autorização.
Na esfera institucional, destaca-se a precedência da legislação brasileira sobre
quaisquer outras, seja lá onde se situar a sede das empresas de internet que
prestarem serviços no País. O respectivo artigo substituiu o que exigia a
instalação em território nacional dos centros de dados sob a guarda daquelas
empresas - um ponto que o Planalto acrescentou ao projeto original depois das
revelações sobre a espionagem eletrônica americana também no Brasil. Ao se dar
conta de que não havia hipótese de aprovação do item, o governo desistiu desse
excesso de zelo, de duvidosa utilidade, aliás, para a salvaguarda da privacidade
das comunicações nacionais.
Nesse caso específico, pode-se dizer que se justificava o formidável lobby das
empresas do setor junto ao PMDB e seus parceiros do blocão "independente" criado
pelo líder do partido na Câmara, Eduardo Cunha, para liquidar ou desossar a
proposta inteira. A nacionalização dos centros de armazenamento dos dados dos
usuários oneraria desnecessariamente as operadoras de telecomunicação - diversas
delas de pequeno ou médio portes. O recuo do governo nessa frente e, mais ainda,
a sua desistência de regulamentar a neutralidade da rede por um decreto
autônomo, aceitando a modalidade prevista na Constituição, foi a saída honrosa
para o oportunista Eduardo Cunha render-se ao projeto sem perder a face.
"A votação só foi possível", comentaria o político em guerra com a presidente,
"porque houve (…) convergência em pontos mínimos." A isso se chama fazer
política. Descendo do salto alto, Dilma deixou de querer impor a sua vontade a
uma ponderável parcela da Câmara em surto de autoafirmação, motivada embora pela
fisiológica insatisfação com o que receberia do Planalto em verbas e cargos. Bem
pensadas as coisas, a presidente até que cedeu pouco para tamanho triunfo que
foi a aprovação da neutralidade da rede contra as pressões das teles,
interessadas em submeter os usuários às conveniências de seu negócio. Se o
Senado ratificar o voto da Câmara, elas não poderão tratar desigualmente os
dados que viajam nas suas
redes - desfigurando o próprio caráter da internet.