WirelessBRASIL |
|
WirelessBrasil --> Bloco Tecnologia --> Crimes Digitais, Marco Civil da Internet e Neutralidade da Rede --> Índice de artigos e notícias --> 2014
Obs: Os links originais das fontes, indicados nas transcrições, podem ter sido descontinuados ao longo do tempo
Leia na
fonte: IDG Now! - Circuito de Luca
[30/03/14]
Marco Civil: poucas certezas, muitas dúvidas - por Cristina de Luca
Diz a Wikipedia: “Interpretar as leis é atribuir-lhe um significado, determinar
o seu sentido a fim de se entender a sua correta aplicação a um caso concreto. É
importante entender e explicar a lei, pois nem sempre ela está escrita de forma
clara, podendo implicar em consequências para os indivíduos”.
A aprovação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 2.126/11, conhecido
como o Marco Civil da Internet, abriu a temporada de interpretações sobre os
direitos dos internautas brasileiros e os deveres dos provedores de conexão,
conteúdo e serviços e também do governo.
Por hora, os argumentos têm em mente a possibilidade de mudanças no Senado, onde
o Marco Civil será examinado nas próximas semanas, simultaneamente, pelas
Comissões de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT), de
Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) e
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), antes da votação em plenário.
O próprio relator do Marco Civil na Câmara, deputado Alessandro Molon (PT/RJ),
admite que podem haver pressões no Senado sobre pontos como a neutralidade de
rede e a liberdade de expressão. São, seguramente, temas com interpretações as
mais variadas. Começando pela própria definição do princípio de neutralidade de
rede.
Vejamos…
Neutralidade de rede
A que se refere exatamente o termo “neutralidade” no Marco Civil?
Que interpretação as teles fazem disso?
“A oferta comercial de acessos de banda larga customizados aos diferentes perfis
de usuário é permitida. Para cada um dos diferentes tipos de acessos,
usuários devem receber mesmo tratamento, independentemente da sua origem, do
destino acessado, do serviço e do aplicativo que está sendo explorado e do
terminal que está sendo cursado.”
O que dizem especialistas da Anatel e do CGI.br? Neutralidade é qualitativa, não
quantitativa…. Quem paga mais, tem mais banda. Mas a banda em si deve ser a
mesma (em termos de diversidade) para todos, dizem os especialistas. O principio
de neutralidade de rede definido no Marco Civil proíbe bloqueio de acesso a
conteúdo ou ofertas que limitem acesso a conteúdos. Capacidade e velocidade
estão fora.
Em português claro: as teles podem continuar vendendo plenos com velocidades
diferentes. Nesses planos, não podem recorrer a práticas como traffic shaping
(bloquear, retardar ou diminuir o tráfego de dados de determinado serviço de
vídeo ou serviço de VoIP para privilegiar parceiros comerciais). Nenhuma
operadora pode criar barreiras para qualquer tipo de conteúdo com qualquer tipo
de interesse financeiro. Também não pode impedir o internauta de fazer downloads
via torrent ou outros protocolos P2P. A neutralidade da rede nada mais é que uma
garantia de não discriminação dos pacotes de dados.
Até aí, todos concordam. As discordâncias começam quando entram em jogo exemplos
práticos. As diferenças de interpretação vão muito além dessa ou daquela
regulamentação das exceções previstas em função de “requisitos técnicos
indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações” e “priorização a
serviços de emergência”.
Por exemplo: na opinião de muitos ativistas digitais e estudiosos –
Raphael Tsavkko e
Pedro Henrique Soares Ramos entre eles – a gratuidade do tráfego de dados
para determinadas aplicações e serviços na banda larga móvel viola a
neutralidade.
Em off, conselheiros do Comitê Gestor e da Anatel me dizem que não. Na
interpretação deles, esses acordos não envolvem degradação ou discriminação do
tráfego. São acordos comerciais que beneficiam o usuário. O mais importante para
o usuário é o parágrafo 3° do artigo 9°.
O resto é equilíbrio econômico. Competição. Que incluiria aí o princípio de
isonomia entre operadora e seu parceiro comercial. As condições da operadora
para o Facebook devem ser a mesma no contrato com o Twitter ou com o Bradesco.
O argumento dos ativistas é o de que, aquele que podem pagar – grandes empresas
de internet como Google, Facebook, etc – vão poder oferecer acesso gratuito. Já
sites e serviços menores, independentes, só seriam acessados mediante pagamento
de serviço de internet, logo, teriam o acesso dificultado. O que configuraria
quebra do princípio de neutralidade.
É, sem dúvida, um debate que precisa ser aprofundado. E pretendo fazer isso nos
próximos dias. Espero que o Senado também.
Outro exemplo prático que vem gerando interpretações diversas sobre a
neutralidade é a modelagem do serviço de banda larga móvel com tributação
reversa (Internet 0800). Na opinião dos meus interlocutores na Anatel e no CGI.br,
tarifação reversa é telefonia, não é assunto que diga respeito ao Marco Civil. E
aí é preciso considerar diferenças técnicas na prestação dos serviços de banda
larga móvel e fixa. Nos Estados Unidos, por exemplo, a FCC trata tratar as
operadoras de banda larga móvel de forma diferente das de banda larga fixa.
De fato, me lembro de já ter ouvido, mais de uma vez, Demi Getschko, conselheiro
do Comitê Gestor da Internet e diretor do NIC.br, afirmar que um dos modos de
atrapalhar a neutralidade é tratar a neutralidade do mesmo modo na estrutura
física e na estrutura celular.
“A banda larga fixa é Internet e pode carregar a telefonia em cima no caso dos
serviços de VoIP. Já a banda larga móvel é telefonia, o 3G, o 4G, que está
carregando a Internet em cima. São modelos que têm DNA e origens diferentes. Um
dia misturarão mas é ainda cedo para isso…”, me explicou Demi semanas atrás.
Liberdade de expressão
Todos concordam que o texto do Marco Civil reafirma o princípio de que o uso da
Internet deve guiar-se pelo respeito à liberdade de expressão, à privacidade do
indivíduo e aos direitos humanos.
Mas há discordâncias pontuais. A Sociedade Civil, por exemplo, está preocupada
com o parágrafo 3° do artigo 10.
De acordo com o professor Paulo Ortellado, da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), “essa injustificável
exceção repete a porta deixada aberta ao Estado para a violação da privacidade
que também está na última versão pública da lei de proteção de dados pessoais. O
parágrafo terceiro diz que as proteções trazidas pelo Marco Civil não vão
impedir que o Estado tenha acesso a dados cadastrais, seja de provedores de
conexão, seja de provedores de serviço. Em outras palavras, autoridades do
Estado poderão solicitar informações a empresas como Telefônica ou como Facebook
e Google sem autorização judicial, acessando assim os dados cadastrais de um
login com comentários de natureza política no Facebook, no Twitter ou num blog
sem precisar de autorização de um juiz. As implicações para a privacidade são
óbvias”.
A sociedade civil também faz muitas críticas ao artigo 15, que trata da guarda
dos registros (logs) de acesso a aplicações. Provedores de acesso à internet
serão obrigados a guardar por um ano os registros de acesso (tempo de conexão) e
os sites e aplicativos pelo prazo de seis meses. Mas isso deve ser feito em
ambiente controlado, que não deverá ser delegado a outras empresas.
O que dizem os advogados?
Ponto positivo do Marco Civil: o provedor de conexão não pode fazer o registro
das páginas e do conteúdo acessado pelo internauta. E os provedores de conexão
não podem “espiar” o conteúdo das informações trocadas pelos usuários na rede.
Ponto negativo: há uma exceção no projeto que permite monitorar, filtrar,
analisar ou fiscalizar o conteúdo dos pacotes em hipóteses previstas por lei, o
que é tido como uma brecha da lei.
Na opinião do advogado Marcelo Tostes, sócio fundador do escritório Marcelo
Tostes Advogados, o arquivamento de informação privada e a obrigação de guarda
de dados de aplicativos gera insegurança jurídica e aumenta os custos para todas
as empresas atuantes no setor, “inclusive as estrangeiras, que terão que adaptar
seus serviços exclusivamente para atender a uma legislação que ainda não
estabelece de forma clara como os seus objetivos básicos, elencados no artigo
2º, devem ser atendidos”.
Outro ponto que preocupa os advogados é a forma encontrada para garantir o
princípio de inimputabilidade da rede, pelo qual o combate a ilícitos deve ser
dirigido aos responsáveis finais e não aos meios de acesso e transporte.
De acordo com o texto aprovado pelos deputados, provedores de conexão à web e
aplicações na internet não serão responsabilizados pelo uso que os internautas
fizerem da rede e por publicações feitas por terceiros. A menos que não acatem
ordem judicial que exija a retirada dessas publicações. A questão é polêmica, em
diversos aspectos.
Na opinião de Marcelo Thompson, professor pesquisador da Faculdade de Direito da
Universidade de Hong Kong e doutorando na Universidade de Oxford, Oxford
Internet Institute, o Marco Civil cria uma dinâmica de irresponsabilidade para
os provedores de aplicações.
Por e-mail, explica:
Mesmo que os provedores de aplicações saibam que
hospedam conteúdo revestido de ilicitude civil (por exemplo, um conteúdo
homofóbico ou que flagrantemente viole a privacidade de uma criança ou de um
adolescente), eles não estão de qualquer forma obrigados a agir. Por outro lado,
podem agir *se quiserem*. Podem retirar o conteúdo do ar se quiserem. E nesse
caso não há qualquer controle. Ora, porque damos a eles esse poder – o poder de
definir os contornos de nossa liberdade de expressão e de nossa privacidade –
sem nenhum dever correspondente?
Veja, além disso, que não há posição neutra para um provedor de aplicações a
partir do momento em que recebe uma notificação. O provedor, uma vez notificado,
tem necessariamente de decidir por manter o conteúdo ou por retirá-lo; tem de
decidir, em outras palavras, entre a liberdade de expressão e outros direitos
potencialmente violados. Se mantiver o conteúdo no ar estará decidindo pela
liberdade de expressão; se retirá-lo estará decidindo, por exemplo, pela
privacidade. É uma decisão inevitável; uma decisão que, independentemente de uma
ordem judicial futura, *será* tomada pelo provedor de aplicações, ainda que em
caráter provisório.
O que o Marco Civil deveria trazer são critérios para como essa decisão,
provisória mas imensamente importante, será tomada. Em não o fazendo, o Marco
Civil nos sujeita ao completo arbítrio – e à irresponsabilidade – dos provedores
de aplicações.
A advogada Patrícia Peck é da mesma opinião. “A vítima de ofensa digital, os
anunciantes e as empresas de mídia digital, vão ter mais dificuldades de aplicar
uma ação rápida em resposta a um crime digital”, diz ela em
artigo escrito para o IDGNow.
Quanto a esse mesmo aspecto, há quem diga que o conceito impreciso de “interesse
da coletividade” -que permite a magistrados de juizados especiais emitirem
liminares para a retirada de conteúdo de um site – abre uma brecha para censura.
Segundo os crítico, o artigo 19 e seus parágrafos 3º e 4º permitem que
magistrados de juizados especiais recebam reclamações e decidam a retirada de
algum material de um site através de critérios subjetivos e arbitrários.
Qual a opinião do deputado Alessandro Molon?
Como se vê, há muitos debates por vir.
O mais importante disso tudo é que, enfim, estamos nos debruçando de verdade
sobre questões que, na prática, terão impacto direto na forma como usamos a
internet, no âmbito pessoal ou para fazer negócios.