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Leia na Fonte: Época
[08/06/15]  Quais são os perigos do acesso gratuito à internet do Facebook para a web livre no Brasil?

Flávia Lefèvre, advogada do PROTESTE e representante do Terceiro Setor no CGI.br, explica os problemas que o Internet.org carrega na tentativa de acabar com a exclusão digital

À primeira vista, o projeto Internet.org de levar internet de graça aos 5 bilhões de excluídos digitais capitaneado pelo Facebook parece uma solução óbvia: uma das empresas mais rentáveis do mundo (lucro global em 2014: US$ 2,9 bilhões) custeia o acesso dos que não podem pagar. Em parceria com operadoras locais, fabricantes de telefones e desenvolvedoras de softwares móveis, o Facebook oferece uma versão simplificada da internet, onde os usuários mais pobres podem usar serviços como a Wikipedia, o Google e sites locais de emprego e saúde, além do próprio Facebook. Em pouco mais de um ano, mais de 9 milhões de pessoas são atendidas pelo Internet.org em 11 países: Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Colômbia, Gana, Índia, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Bangladesh e Maláui.

Conforme vai deixando de ser um discurso para chegar a mercados selecionados do mundo, porém, o Internet.org começa a enfrentar uma crescente resistência por parte de grupos que representam os direitos do consumidor pelo mundo. Em 18 de maio, 65 organizações legais de 31 países divulgaram uma carta aberta para o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, afirmando que o projeto viola “os princípios de neutralidade da rede, ameaça a liberdade de expressão, a igualdade de oportunidade, a segurança, a privacidade e a inovação”. Os signatários da carta não são os únicos a acusar a rede social nesses termos. A Electronic Frontier Foundation (EFF), organização que representa os direitos de quem usa a internet, acusou o programa de “não ser neutro, seguro ou a internet”.

No Brasil, pontos de resistência começaram a aparecer em abril, logo depois que a presidente Dilma Rousseff encontrou Zuckerberg na 7ª Cúpula das Américas, realizada no Panamá. Vestida com um casaco com o logo do Facebook, Dilma anunciou que o governo brasileiro e a rede social fecharam um acordo para estudar como trazer o Internet.org ao Brasil. Institutos nacionais, como o Nupef, Bem Estar Brasil e Coding Rights, entidades de proteção aos consumidores, como a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (PROTESTE), e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGi.br) demonstraram publicamente desconforto com a falta de transparência do processo.

Nessa entrevista, Flávia Lefèvre, advogada do Proteste e representante do 3º setor no CGI.br, explica os potenciais perigos que o Internet.org representa para a liberdade e a neutralidade da internet brasileira.

Quais são os principais riscos que o Internet.org representa para a internet livre no Brasil?

O primeiro risco é o governo, ao se associar com o Facebook, se acomodar com a ideia de que a universalização do acesso à internet pode se dar pela rede móvel e, pior, num sistema orientado não propriamente pelo interesse público, mas pelo interesse econômico de empresas que se associem para este projeto. Ou seja, os consumidores das áreas mais remotas do país estariam sujeitos a uma navegação inadequada ao conceito do que seja a internet, que se caracteriza por ser livre e aberta. E é esta característica que faz dela um importante motor para o desenvolvimento social, cultural e econômico.

O Internet.org implica em criar uma classe de usuários discriminada; aqueles que não tenham renda ou infraestrutura disponível para um acesso integral estariam à margem de garantias como a neutralidade da rede, por exemplo. O CGI.br definiu 10 princípios (Resolução 2009/003) para a internet no Brasil. Entre eles está a padronização e a interoperabilidade, segundo o qual a internet deve se basear em padrões abertos que permitam a participação de todos em seu desenvolvimento e a neutralidade, tendo ficado expresso que filtragens ou privilégios de tráfego devem respeitas a critérios exclusivamente técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento.

Juridicamente, o Internet.org infringe o Marco Civil da Internet?

O Marco Civil da Internet teve como fonte o Decálogo do CGI.br, de modo que, fazendo uma interpretação integrada, entendo que o Internet.org fere o art. 9º, do Marco Civil da Internet, pois, na medida em que o usuário está conectado à internet, mas só pode acessar determinados conteúdos ou aplicações, é incontestável que estará ocorrendo discriminação e, consequentemente, bloqueio de acesso a outros sites que não estejam incluídos no pacote acertado entre governo, Facebook e parceiros.

Entendo que esse projeto fere também o Código de Defesa do Consumidor, pois se trata de uma espécie de venda casada, que viola o direito de liberdade de escolha do consumidor e de igualdade na contratação.

Quando se conversa com o usuário médio, aquele que paga seu pacote de 3G pré-pago, há uma mentalidade bem popular de não transparecer preocupação quanto a esses riscos “desde que dê para usar o Facebook de graça”.

Isso pode ser verdade e é um grande problema. Mas não é justamente este quadro que queremos mudar? Queremos cidadãos mais educados, mais politizados e mais cultos. Todos os estudos mostram que o acesso à internet promove esse desenvolvimento; o acesso à internet e não o acesso ao Facebook.

Aliás, o próprio Marco Civil da Internet estabelece que o acesso à internet é essencial para o exercício da cidadania (art. 7º) e declara como alguns de seus objetivos a "promoção do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos e da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados" (art. 4º).

Tenho certeza que esses objetivos estarão longe de serem alcançados se o atual governo se contentar a oferecer aos cidadãos de baixa renda um acesso que restringe o acesso ao mundo que é a internet.

É completamente impossível participar de consultas públicas, acessar qualquer tipo de biblioteca ou órgão de imprensa, assistir a aulas e filmes se você está sujeito ao Internet.org ou mesmo a um plano de franquia pífia - aqui no Brasil em geral as franquias são de 500 Mb; ou seja, apostar na rede móvel como vetor principal para a inclusão digital é um erro, que piora muitíssimo se associado ao projeto do Mark Zuckerberg.

Em médio/longo prazo, quais são os riscos que esses mesmos usuários que parecem não ligar hoje sofrem caso o Internet.org tenha sucesso?

Já há pesquisas mostrando que nos países onde o Facebook atua fortemente - e são muitos - os usuários não tem a menor ideia de que estejam conectados à internet. E isto é péssimo, na medida em que os grandes benefícios que a internet pode trazer vêm justamente da possibilidade da navegação sem fronteiras.

Pelo aspecto concorrencial este problema também é grave, pois inibe a inovação e as pequenas empresas e, desde problema, decorrem outros graves - o desrespeito ao direito de livre fluxo de informação e liberdade de expressão, pois corremos os risco de receber notícias processadas por pontos de vista parciais, o que também coloca em risco a democracia.

O CGI.br já tentou dialogar com o Facebook para tentar entender melhor como será a implementação do Internet.org por aqui?

O CGI.br já questionou formalmente o Facebook. Nossas perguntas dizem respeito a três aspectos considerados fundamentais; como compatibilizar o Internet.org com as normas de neutralidade em vigor, como será feito o tratamento dos dados dos usuários que se vincularem ao projeto e como serão tratadas os aspectos concorrenciais que envolvem as empresas que se associam ao projeto. Estamos aguardando as respostas para nos posicionarmos.
internet-acesso-países em desenvolvimento-tecnologia-acesso a internet-gratuita (Foto: Getty Images)
Em pouco mais de um ano, mais de 9 milhões de pessoas são atendidas pelo Internet.org em 11 países: Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Colômbia, Gana, Índia, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Bangladesh e Maláui (Foto: Getty Images)

Muita gente defende que qualquer conexão é melhor do que nenhuma conexão. Vale a pena se submeter aos critérios do Facebook para prover acesso aos excluídos digitais?

Pessoalmente discordo dessa afirmação. E no nível de formulação de políticas públicas de inclusão digital essa afirmação é ainda mais descabida. A política de que o ruim é melhor do que nada significa o Estado abrir mão de seu poder/dever de definir metas e planejar ações que garantam que as metas serão de fato atingidas.

Existe uma crescente resistência de entidades na América Latina à forma como o Facebook vem implementando o Internet.org ao redor do mundo. Por quê?

A resistência da sociedade civil organizada começa pela falta de transparência na definição dos termos dos acordos e na falta de informação quanto aos critérios para definição dos parceiros que operam infraestrutura e fornecimento de aplicações e conteúdos. Por exemplo, no Panamá houve reação das empresas de infraestrutura que ficaram de fora do Internet.org, inclusive uma delas com participação acionária do Estado de 49%.


Aqui no Brasil, a falta de transparência se repete. Surpreendentemente e de repente, nos deparamos com um vídeo constrangedor postado no blog do Planalto, com a Presidenta vestindo a jaqueta com a logomarca do Facebook e anunciando a tal parceria e, pior, comparando os efeitos da rede social à chegada da energia elétrica para a humanidade.

Dezenas de entidades da sociedade civil, entre elas a PROTESTE, perguntaram por carta à Casa Civil sobre o possível acordo e recebemos a resposta de que não há nada de concreto por enquanto. Ou seja, o governo adota uma postura errática e prejudicial ao processo de regulamentação do Marco Civil da Internet, que está em curso.

Dizer que o Internet.org será um instrumento de universalização do acesso à internet é, em alguma medida, comprometer a abrangência do direito à neutralidade, como ficou expresso no MCI. E a neutralidade é uma ferramenta jurídica para garantir tratamento isonômico e não discriminatório na internet, a fim de preservar o caráter aberto da arquitetura de redes e valores como a democracia, liberdade de expressão, privacidade, inovação entre outros direitos fundamentais, como reconhecido na Declaração de São Paulo – documento produzido no NetMundial em abril de 2014, e direitos do consumidor.

E, portanto, é legítimo e compreensível que a sociedade civil na América Latina reaja. Estamos falando de países com baixa penetração de infraestrutura de suporte à comunicação de dados em banda larga e, portanto, iniciativas que retardem políticas de investimentos em redes de fibra e que flexibilizem a neutralidade, certamente comprometem a universalização e o acesso a uma internet aberta, para que se preservem a liberdade de expressão, o direito à informação livre, em última instância, o Estado Democrático.

Em um mundo ideal, qual seria a forma “correta” de o Facebook oferecer esse acesso?

Na nossa avaliação, o ideal a ser tratado como política pública de inclusão digital é associar as políticas de expansão de infraestrutura com as políticas de garantia de acesso não discriminatório na medida do possível. É claro que sabemos das limitações orçamentárias do país hoje e das dificuldades de se garantir acesso pela rede fixa a todos os brasileiros a curto e médio prazo. Sendo assim, vemos na na tecnologia móvel um vetor relevante neste momento, a despeito do fato de que 30% dos municípios brasileiros hoje não possuírem rede móvel com capacidade para transmissão de dados.

O objetivo ideal, então, é a expansão das redes de fibra por todo o país, assim como o aproveitamento com base nas novas tecnologias (GFAST) das redes de acesso e de transporte vinculadas aos contratos de concessão da telefonia fixa, com valor estimado em R$ 71 bilhões pela ANATEL, de modo que planos com franquias pífias como são comercializados hoje, ou no sistema de zero-rating para determinados aplicativos, sejam descartados.