Michael Stanton

WirelessBrasil

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18/12/2000
Lições de fora sobre a mecanização das urnas

Numa sentença proferida no última dia 12 de dezembro, o Supremo Tribunal norte-americano encerrou a batalha jurídica sobre os resultados contestados das eleições presidenciais deste ano. Na sentença era implicitamente aceita a validade de realizar recontagem, até manual, dos votos dados em máquinas de votar, mas a adesão ao calendário eleitoral não permitiu que a recontagem fosse realizada a tempo, por falta de critérios uniformes sobre a interpretação dos votos não registrados pelas máquinas totalizadoras usadas. Embora tenha sido usada tecnologia mecânica para registrar os votos no estado de Florida, epicentro da confusão, as lições que podem ser tiradas dessa experiência têm validade também para casos, como o nosso, onde passamos a utilizar tecnologia eletrônica.

Talvez seja desejável dar algumas explicações sobre o funcionamento das máquinas de votar usadas na Florida. Primeiro, a escolha da tecnologia é feita a nível local, em cada jurisdição, chamada condado. Na maioria dos condados de Florida, a tecnologia mecânica usada utiliza um cartão, que é perfurado pelo eleitor para indicar suas preferências. O cartão é então depositado numa urna, para posterior totalização dos votos - os cartões são lidos por uma máquina, e os totais calculados. Votos em branco e nulos também são identificados e totalizados. Normalmente a recontagem envolve repetir este processo, e, a princípio, não deve haver diferença nos totais.

O problema fundamental encontrado na Florida foi a alta taxa de votos em branco, que somaram mais de 40.000 em todo o estado, onde quase 6 milhões de votos foram registrados como válidos. Este número de votos em branco (mais de 0,6% dos votos válidos) excede em muito os 537 votos que separaram os dois principais candidatos presidenciais, e poderia alterar o resultado final. A suspeita geral é que os votos em branco não haviam sido perfurados adequadamente, e, portanto, não contados, por falhas no processo de perfuração. Afinal, o voto na Florida é facultativo, e era de se esperar que uma pessoa que tivesse tomado a iniciativa de ir votar não deixaria em branco seu voto. Porém, como corrigir esta situação? Os advogados do candidato Gore argumentaram que a recontagem poderia ser manual, e o apurador poderia determinar a intenção do eleitor, a partir de furos parciais, ou até depressões, no cartão, em caso da ausência de um furo registrado pela máquina totalizadora. Esta proposta foi considerada insatisfatória pelo Suprema Tribunal,

Qual seria a solução correta? Peter Neumann, pesquisador do Stanford Research International, recentemente colocou com clareza os requisitos para qualquer sistema ou processo eleitoral (www.interesting-people.org/200012/0017.html). Um destes tratava da validação imediata da intenção do voto:

"Fraude e acidentes devem ser considerados em todo o processo eleitoral. Um sistema eleitoral deve ser projetado, implementado e operado como um sistema integrado, e as interfaces humanas (para eleitores, administradores, pessoal de manutenção, ...) devem ser consideradas componentes dele. Qualquer sistema deve verificar a validade do voto na hora de votar. .... Se cartões perfurados ainda existirem depois de 2000, um sistema usando cartões poderia facilmente incluir um dispositivo em cada seção eleitoral que verificasse a validade do voto, antes que ele seja depositado na urna."

Com esta precaução, podemos supor um voto em branco como a intenção do eleitor, e evitar a celeuma que seguiu a recente eleição norte-americana. É muito interessante notar que já havia sido observada uma alta taxa de votos em branco (14%) na eleição em 1988 para senador no estado de Florida, e não foram tomadas providências profiláticas, o que, sem dúvida, contribuiu para a gravidade da crise que acometeu os EUA nas últimas semanas.

Outro dos requisitos apresentados por Neumann atinge a votação eletrônica, como praticada no Brasil:

"Se os votos forem registrados e contados eletronicamente, deverá ser possível realizar auditoria do processo de votação, através de algum registro que não possa ser falsificado, adulterado ou contornado, para tornar inviáveis a subversão eletrônica e os acidentes."

Na nossa coluna de 13 de novembro, já foi elaborado este ponto, e apresentada ali uma solução, que, simultaneamente, possibilitaria a validação da intenção do eleitor e a posterior auditoria da totalização, através da impressão pela urna eletrônica de um comprovante do voto, que pudesse ser conferido pelo eleitor, e depois depositado numa urna, permitindo a recontagem independente. Três dias mais tarde, o jornalista Luís Nassif, na sua coluna da Folha de São Paulo, citou mensagem eletrônica de Carlos Rocha, criador do primeiro projeto de urna eletrônica nacional, na qual este afirmou que a sugestão da impressão do voto já havia sido encaminhada ao TSE, depois da eleição de 1996, porém nunca chegou a ser incorporado no modelo de urna adotado. O modelo atualmente usado padece do defeito de não permitir auditoria, nem do voto individual, nem da contagem dos votos de cada seção. (Na mesma coluna do Nassif, é feita referência a uma disputa sobre o patente da urna eletrônica, e a posição do Carlos Rocha é apresentada no seu sítio www.ue2000.com.br).

O problema das eleições deste ano na Florida era previsível e foi previsto. O texto citado de Neumann cita um artigo de 7 de novembro de 1988 da revista "The New Yorker", que comentou:

"Provavelmente existe um Tchernóbil ou um Three Mile Island (ambas referências a usinas nucleares acidentadas) a nossa espera em alguma eleição futura, da mesma forma que a Califórnia aguarda um terremoto de grau oito na escala Richter."

O ano 2000 deu Tchernóbil na Florida, e a eleição do presidente dos Estados Unidos acabou sendo decidida pelo voto majoritário dos nove juizes do Supremo Tribunal. As urnas eletrônicas em uso no Brasil têm um projeto defeituoso, que possa ser corrigido antes que seja tarde. Em que ano vai dar Tchernóbil nas eleições daqui, por não termos tomado providências adequadas a tempo para evitar sua ocorrência?