Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2000       Página Inicial (Índice)    


27/11/2000
Cryptonomicon, por Neal Stephenson

Acabo de ler o romance tecno-histórico, Cryptonomicon, de Neal Stephenson, editado (apenas em inglês, infelizmente) em 1999 (capa dura) e em 2000 (brochura). Stephenson é normalmente classificado, junto com Bruce Sterling e William Gibson, como escritor da geração cyberpunk, cujos romances costumam retratar o futuro do mundo cibernético. Nesta obra, Stephenson desenvolve um romance histórico, com ramificações e conseqüências até os dias de hoje. O estilo é leve, as histórias bem contadas, e conseguiu manter a atenção deste leitor até a conclusão das suas mais de 900 páginas.

Unem as histórias dois temas: a criptologia (tanto a criptografia, como a criptanálise) e o destino do ouro recolhido pelos alemães e os japoneses dos países que conquistaram e saquearam durante a Segunda Guerra Mundial. A parte histórica do romance trata do período entre 1937 e 1945, e conta a versão revisada deste período, com ênfase no papel fundamental da criptologia na condução desta guerra pelos aliados (o projeto Ultra). Um dos personagens reais de livro é Alan Turing, o grande matemático inglês que projetou e ajudou a construir o Colossus, o primeiro computador eletrônico, usado para mecanizar o trabalho de decifrar mensagens inimigos (http://www.turing.org.uk/turing). No livro, Turing tem como seus amigos Lawrence Waterhouse, matemático autodidata e músico norte-americano, e Rudy von Hacklheber, pesquisador de matemática alemão. Com o início das hostilidades da Segunda Guerra Mundial, cada um segue caminho próprio para acabar no serviço de inteligência do seu próprio país. O principal personagem militar deste período é Bobby Shaftoe, fuzileiro naval norte-americano, presente nas Filipinas com sua namorada filipina, Glory, no dia do Pearl Harbour, e que volta para lá na fase final da guerra para reencontrar-se com Glory e conhecer o filho deles, enquanto ajuda a expulsar os invasores japoneses. Outros personagens combatentes são Günter Bischoff, comandante de submarino alemão, e Goto Dengo, engenheiro de minas e tenente do exército japonês. Em 1945 estes se encontram nas Filipinas para onde é levado o ouro nazista destinado ao esconderijo construído por Goto.

O sucesso da quebra dos códigos dos alemães e japoneses pelos aliados foi amplo e duradouro, pois foi possível esconder esta façanha do inimigo, para que este continuasse a empregar os mesmos códigos. Isto significa que não seria possível aproveitar plenamente a informação obtida das mensagens interceptadas, pois o inimigo astuto iria suspeitar a origem da inteligência do adversário, desconfiar da segurança dos seus códigos e mudá-los. Para proteger a origem da inteligência do projeto Ultra, o livro cria um projeto Ultra Mega, do qual faziam parte Turing e Waterhouse, com a missão de plantar evidências que pudessem explicar de outra forma as descobertas dos aliados. Boa parte dos incidentes engraçados da narrativa é de operações militares realizadas como parte do projeto Ultra Mega. Em contraponto, há também episódios de extrema violência, como de fato ocorreram durante aquela guerra, quando morreram dezenas de milhões de pessoas.

A ação contemporânea envolve as atividades da empresa high-tech Epiphyte, cujos sócios incluem Randy Waterhouse, neto do Lawrence. Talvez seja este o primeiro caso de um dos personagens principais de um romance ser um administrador de sistema Unix. Randy entende de computadores e comunicações, e suas responsabilidades na empresa são eminentemente técnicas. A Epiphyte tem negócios na região das Filipinas, onde participa do grande projeto da construção da Cripta, um data haven, ou seja, uma espécie de paraíso de informação, num país minúsculo e rico em petróleo chamado Kinakuta, onde a operação de sistemas de informação não estaria sujeita às leis e aos controles governamentais das principais economias mundiais. Nesta parte da narrativa, também figura a aplicação civil da criptografia, para conservar o segredo comercial e permitir comunicação segura entre os sócios da Epiphyte usando correio eletrônico. Aprendemos sobre as relações, especialmente legais, entre as empresas, e algo da formação cultural de Randy, especialmente a confraria de RPG (Role Playing Games). Outros personagens da narrativa contemporânea incluem Avi, o principal sócio do Randy, Andrew Loeb, um advogado que era amigo do Randy, mas agora o odéia, Dr Kepler, o Dentista, bilionário com quem a Epiphyte tem negócios em comum, e Doug Shaftoe, filho de Bobby e Glory, que é um caçador de tesouros nas Filipinas. Amy Shaftoe, filha de Doug e neta de Bobby, acaba namorando Randy Waterhouse, neto de Lawrence.

O livro consegue avançar simultaneamente as duas narrativas, a histórica e a contemporânea, praticamente alternando entre elas o tempo todo. O autor explora paralelos entre as aventuras dos seus personagens, e cria uma malha de conexões entre os dois períodos, através do parentesco dos personagens, ou dos temas de criptologia e do ouro. Por exemplo, Lawrence Waterhouse guardou mensagens que ele não conseguia decifrar na época da guerra, e estas foram recebidas de herança por Randy, que as decifrou para aprender a localização do esconderijo do ouro. Permeia as duas narrativas uma organização quase religiosa chamada Societas Eruditorum, que tende a ser um agente do Bem no meio de muitas maldades. Randy também aprende de um membro desta organização uma técnica criptográfica de origem anterior ao computador, chamado Solitaire, que é realizada com um baralho comum contendo dois curingas. (Esta técnica foi criada por Bruce Schneier (v. coluna de 23 de outubro), que a descreve por extenso num apêndice ao livro.)

O autor mostra conhecimentos seguros de geografia, história, tecnologia, direito e um refinado senso do ridículo. Ele nos diverte e educa ao mesmo tempo. Eu pouco sabia sobre as Filipinas antes de ler este livro, e fiquei curioso para conhecer a região. Naturalmente, há muita ênfase em criptologia, mas não me parece essencial que o leitor domine todos os detalhes técnicos, para poder acompanhar a história e se entreter com o texto. Em particular, boa parte da ênfase do livro é o controle de conhecimento, tanto em período de guerra como de paz. Stephenson nos mostra de maneira elegante as possibilidades e limitações das tecnologias a nossa disposição.

Foi bem ambiciosa a intenção do autor em criar um painel multi-facetado e tão rico em detalhes para contar a sua história, e parece que foi bem sucedido. A editora Avon criou um sítio dedicado ao livro, contendo informações sobre o autor e trechos do livro, além de uma entrevista com ele (www.cryptonomicon.com). No site da Amazon Books (www.amazon.com), já tem pelo menos 429 leitores oferecendo sua avaliação sobre este livro - uma reação muito palpável, e a maioria bastante favorável. Com Cryptonomicon Neal Stephenson saiu do recanto dos cyberpunks e abraçou uma platéia maior, merecendo, inclusive, uma entrevista na revista Time (www.time.com/time/digital/daily/0%2C2822%2C46833%2C00.html) . Será que nenhuma editora nacional vai tomar a iniciativa de apresentá-lo aos leitores do português?