Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


02/07/2001
Apenas uma questão semântica?

O início da Internet comercial no Brasil em 1995 foi marcado por um acordo interministerial entre os Ministérios de Comunicações (MC) e de Ciência e Tecnologia (MCT), registrado em nota conjunta de junho daquele ano (www.cg.org.br/regulamentacao/notas.htm). Por este acordo foi criado o Comitê Gestor Internet/BR (www.cg.org.br), com o objetivo primordial de promover o desenvolvimento de serviços Internet no Brasil. Ao mesmo tempo, o MC adotou a Norma 004/95, que definia a relação entre os "provedores de serviço de conexão à Internet" e os "Serviços de Telecomunicações prestados pelas Entidades Exploradoras de Serviços Públicos de Telecomunicações" (www.anatel.gov.br/biblioteca/Normas/Normas_MC/norma_004_95.htm). Nesta norma foi introduzido e definido o termo "Serviço de Valor Adicionado: serviço que acrescenta a uma rede preexistente de um serviço de telecomunicações, meios ou recursos que criam novas utilidades específicas, ou novas atividades produtivas, relacionadas com o acesso, armazenamento, movimentação e recuperação de informações". Finalmente, a Norma 004/95 claramente define "Serviço de Conexão à Internet" como o "nome genérico que designa Serviço de Valor Adicionado que possibilita o acesso à Internet a Usuários e Provedores de Serviços de Informações". Deve-se notar a distinção clara entre o serviço de telecomunicações, e o serviço de valor adicionado, que utilize o serviço de telecomunicações, o qual (normalmente) não é prestado por um provedor Internet, mas por uma operadora de telecomunicações.

A mesma distinção entre serviço de telecomunicações e serviço de valor adicionado foi mantida nos artigos 60 e 61 da Lei Geral das Telecomunicações (LGT) de 1997 (www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9472.htm), onde é dito explicitamente que o "serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição". Esta abordagem jurídica é repetida em outros países, por exemplo, nos EUA, onde se faz distinção entre o "basic telecommunications service" (serviços de telecomunicações regulados) e o "enhanced telecommunications service" (serviços de dados não regulados), ou no Reino Unido, onde "enhanced services", tais como acesso à Internet, podem ser oferecidos por provedores, que não possuam sua própria infra-estrutura de rede de telecomunicações.

No Brasil a distinção é importante, porque serviços de telecomunicações são regulados pela Anatel, necessitando de licenciamento, e serviços de valor adicional não o são, pelo menos por enquanto. Foi por isto que causaram celeuma na semana passada duas manifestações separadas a respeito desta distinção jurídica, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e de um alto funcionário da própria Anatel, já tendo sido provocado por este último uma rápida resposta do meu antecessor neste espaço, Sílvio Meira, na sua coluna de 29/6/2001 no sítio www.no.com.br.

O caso do STJ é curioso, para dizer o mínimo, embora os detalhes do julgamento ainda não estejam de pleno conhecimento público. Segundo as reportagens sumárias que já foram publicadas (v. por exemplo www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/jun/27/310.htm), a 1a Turma do STJ concluiu que, ao oferecer endereço na Internet para usuários ou disponibilizar sites para o acesso, os provedores prestam serviços de comunicação, e, portanto, devem recolher o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Aparentemente, esta opinião estaria em conflito com as definições de serviços de telecomunicações e serviços de valor adicionado contidas na LGT. Baseado nisto, deve haver recurso da decisão, primeiro ao próprio STJ, e, se for necessário, até o STF.

A outra manifestação foi do Superintendente de Serviços Públicos da Anatel, Edmundo Matarazzo, que em entrevista publicada semana passada (www.computerworld.com.br/templ_textos/materias.asp?id=12593) criticou a organização da Internet, e advogou a adoção no Brasil do "modelo europeu", que dispensaria a noção de serviço de valor adicionado, fazendo todos os provedores Internet em provedores de serviços de telecomunicações, e, portanto, reguláveis. A primeira vista, não é claro qual é o "modelo europeu" a que se refere, pois há muitos países na Europa. Boa parte destes hoje pertence à União Européia (UE), que tenta seguir um caminho de modernização e desregulamentação das telecomunicações, inspirado pelo exemplo dos EUA. Até o momento não foi-me possível encontrar evidência documental da existência de um modelo da Internet radicalmente diferente daquele conhecido no Brasil, que estaria sendo debatido pela Comissão das Comunidades Europeus, uma espécie de burocracia reguladora da UE. Seria muito bom o superintendente explicitar publicamente qual é a proposta que ele defende, para que ela possa ser debatido.

Uma das preocupações reveladas na entrevista do superintendente é que provedores grandes no Brasil estariam conseguindo preços para a obtenção de serviços de conectividade Internet mais atraentes do que os pequenos, o que nos parece ser um fato de vida num mercado competitivo como a Internet, onde os preços são realmente dinâmicos. Outra preocupação dele é que a Internet estaria organizada de tal forma que a sua conectividade internacional passe necessariamente pelos EUA, e que os custos de comunicação com os EUA tipicamente estariam sendo pagos apenas pelo outro país envolvido, diferente da forma tradicional de pagar a telefonia internacional, onde os custos são normalmente compartilhados entre as duas pontas de uma conexão.

O modelo de negócios da Internet é reconhecidamente diferente da telefonia, pois a grande rede é formada de uma hierarquia de redes de interconexão ("backbones"), onde uma rede de nível mais baixa na hierarquia paga serviços de conectividade a uma ou mais redes de nível mais alto. Ocasionalmente são celebrados acordos de "troca de tráfego" entre redes "pares", quando as despesas da interconexão são compartilhadas. O incentivo de considerar uma outra rede como par diminui quando ela for menor, e a interconexão entre as redes beneficiaria principalmente a menor das duas redes. No Brasil, isto é ilustrado pelo fato que a rede Internet da Embratel, a maior dos provedores nacionais, não faz "troca de tráfego" nacional com nenhuma outra rede comercial, aceitando apenas conexões pagas inteiramente pela outra rede (esta situação já foi discutida na coluna de 2 de outubro de 2000). Ao nível internacional, temos o fenômeno criticado pelo superintendente, uma vez que a principal beneficiária da interconexão de uma rede brasileira à Internet através de uma rede nos EUA é certamente a rede brasileira. Entretanto, com a evolução do mercado, observamos que os preços de telecomunicações em todos os níveis tendem a cair, por motivos tecnológicos e devido à maior oferta de alternativas de conexão.

No fundo, o superintendente parece ser um saudosista, com muita fé em regulamentação como mecanismo de ordenar o mercado. Até certo ponto pode ter a razão, mas é muito interessante ler os comentários de William Kennard, presidente da Federal Communications Commission (FCC) dos EUA durante o governo Clinton, que entendia que um órgão regulador às vezes usa a regulamentação como escudo, quando deveria usar como espada (www.fcc.gov/Speeches/Kennard/2000/spwek019.html). Por exemplo, as empresas com que a FCC lida são muito diferentes em termos de tamanho e poder de fogo. Em particular, algumas têm uma história muito longa de atuação como monopólio protegido, durante qual tempo puderam construir uma sólida infra-estrutura de rede. Na visão de Kennard, quando entram novas empresas, tentando usar novas tecnologias para concorrer com as empresas estabelecidas, não se pode aplicar cegamente as mesmas regras às empresas estabelecidas e novas. Tem que evitar onerar as empresas de tecnologias novas com o atendimento às regras criadas para as tecnologias velhas. Esta defesa do novo seria usar a regulamentação como espada. Uma alternativa, menos amiga a tecnologias novas, seria usar a regulamentação como um escudo para proteger as empresas estabelecidas contra a competição das novas tecnologias. Levaria as empresas estabelecidas a investir em advogados e políticos, ao invés de equipamentos e serviços aos clientes. Neste discurso, Kennard estava falando em setembro de 2000 sobre a indústria crescente de telefonia IP, que nos EUA começava a concorrer seriamente com a telefonia convencional, sem a interferência reguladora da FCC. Aliás, ele prometia nesta ocasião que a FCC não pretendia dificultar o desenvolvimento desta nova tecnologia, e que tentaria de proteger este desenvolvimento contra as investidas dos seus opositores expoentes da tecnologia convencional. O assunto da telefonia IP no Brasil foi discutido neste espaço recentemente (colunas de 2 de abril e 24 de junho).

É de se esperar que a Anatel venha a atuar com bastante circunspecção nestes assuntos de Internet e telefonia IP, mantendo como estrela guia o interesse do consumidor acima de tudo.