Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


11/06/2001
A Conferência de Haia e a Internet

A Conferência de Haia sobre o Direito Internacional Privado (www.hcch.net/index.html) foi primeiro convocada em 1893, e desde 1951 assumiu sua forma atual e permanente com o objetivo de trabalhar para a "unificação progressiva do direito internacional privado". A conferência, da qual participam 50 países, aprova tratados internacionais, chamados "convenções", que depois poderiam ser ratificados pelos países membros. Depois de uma convenção entrar em vigor, outros países não membros podem aceder a ela, se for do seu interesse. Desde 1951 foram aprovadas 35 convenções, das quais umas 16 lidam com direito de família, herança e nacionalidade, e outras 11 a assuntos comerciais. De modo geral, os assuntos tratados não são controvertidos, e as convenções fornecem meios aceitáveis de reconciliar as diferentes jurisdições de países soberanos. Exemplos de tais convenções recentes incluem a proteção dos interesses de menores em casos da sua abdução internacional, e as leis aplicáveis a contratos para o comércio internacional de bens. Porém, nos últimos meses começaram ser ouvidas vozes altamente críticas de uma proposta de nova convenção sobre Foro Internacional e os Efeitos de Julgamentos em Assuntos Civis e Comerciais.

Esta proposta foi lançada em 1992 pelos EUA, que queriam fazer valer em outros países as decisões dos tribunais norte-americanos a respeito do comércio internacional de bens físicos e serviços tradicionais. De maneira geral, a convenção proposta efetivamente daria eficácia mundial às decisões tomadas no foro judicial escolhido para a resolução de conflitos do comércio, geralmente no país do ponto de venda do bem. Porém, hoje é justamente dos próprios EUA que vem a maior parte das críticas a esta proposta, e a razão disto é a explosão em comércio eletrônico que houve a partir de 1995, que introduz novas classes de serviço, além de introduzir ambigüidade sobre a localização física do ponto de venda.

O Consumer Project on Technology - CPT (www.cptech.org), [uma ONG norte-americana criada em 1995 por Ralph Nader, conhecido defensor dos consumidores e candidato independente nas eleições presidenciais de 2000, concentra sua atenção nos direitos de propriedade intelectual e suas relações com a saúde, o comércio eletrônico e políticas e práticas de concorrência. Entre os assuntos acompanhados pelo CPT está a disputa entre Brasil e os EUA sobre a política brasileira de combate de AIDS, que procura reduzir o custo dos remédios usados, e o CPT já se manifestou publicamente em defesa da posição brasileira, por ser mais diretamente pertinente aos interesses de consumidores do que da indústria farmacêutica, protegida pelo governo dos EUA (www.cptech.org/ip/health/c/brazil).

O CPT também acompanha a proposta de convenção de Haia sobre foro internacional (http://www.cptech.org/ecom/jurisdiction/hague.html), e apresenta o seguinte sumário dela:

1. Os países signatários concordam em seguir um conjunto de regras sobre jurisdição para litígios internacionais, incluindo quase todos litígios civis e comerciais. 2. Desde que sejam seguidas as regras, cada país se compromete a executar quase todos os julgamentos e mandados de outros países membros, com exceção de julgamentos "manifestamente incompatíveis com a política pública", ou a exceções específicas na convenção, tais como ações contra limitação de concorrência. 3. Um julgamento em um dos países será executável em todos os países da convenção, mesmo em países não envolvidos numa disputa específica. 4. Não é exigida a harmonização legislativa entre os países, exceto pelas regras sobre jurisdição, e salvo a exceção acima mencionada de "política pública", não há restrições do tipo de lei nacional a ser aplicável sob a convenção. 5. Todos contratos B2B ("business to business") com cláusula de eleição de foro são objeto da convenção, incluindo contratos não negociados para o mercado de massa (como de software). Em algumas versões recentes da convenção, são definidas como transação B2B muitas que envolvem consumidores, tais como, a venda de uma passagem aérea pela Internet, a venda de software para uma escola ou de um livro a uma biblioteca, o que significa que o vendedor do bem ou do serviço poderá eliminar o direito a ser acionado no país onde reside o consumidor.

Críticos da proposta convenção atribuem os defeitos da proposta convenção à sua amarração ao conceito de presença física, que se tornou mais difícil a ser definida quando todos, de qualquer país, podem ver o mesmo conteúdo na Internet e fechar negócios eletronicamente. A proposta como está permitiria usar a lei local de qualquer país para litígio de comércio eletrônico, assim tornando as leis mais restritivas na lei aplicável à Internet. Na vanguarda em defesa da proposta atual está a indústria de entretenimento, já muito exercitada pelo Napster e pela disputa sobre cópias de DVDs, pois o tratado permitiria a esta indústria a escolha da foro para disputas sobre propriedade intelectual, e os tribunais em outros países não teriam saída exceto executar os julgamentos dados neste foro, onde as leis poderiam ser muito mais restritivas.

Até o desenvolvimento de software gratuito estaria sujeito a ações em foros escolhidos pelo litigante sobre assuntos como engenharia reversa e condições de utilização. Se o software for distribuído livremente pela Internet, como normalmente é o caso hoje, seus autores poderiam ser processados em foros arbitrários por infringir direitos de propriedade intelectual, patentes e segredo comercial, e seriam sujeitos à execução de tais julgamentos contra seus ativos em outros países da convenção.

Entre as possibilidades previstas pelos críticos está o caso da publicação num sítio WWW de uma crítica do tratamento de mulheres na Afeganistão. Aparentemente, a convenção permitiria que o regime afegão pudesse processar a empresa provedora de serviço Internet, num outro país signatário, onde não é dada tanta proteção à liberdade de expressão. Uma decisão adversa nesse foro seria executável nos demais países do tratado. Alguém imagina que, num caso desses, o provedor não iria acabar censurando a matéria ofensiva, para evitar o julgamento. Um pouco tardio, empresas de telecomunicações parecem que estão acordando às conseqüências da proposta em discussão, que pode torná-las reféns das leis de outros países e da gula da indústria de entretenimento, e agora começam a tentar modificar seu texto, ou até abortar ou adiar a discussão.

Esta discussão deverá ser retomada neste mês de junho, com a participação do Brasil, que resolveu aderir à Conferência de Haia recentemente. Até o momento não teve muitas notícias sobre esta convenção e a posição a ser defendida pelo governo brasileiro. O responsável do Brasil perante a Conferência de Haia é o professor de direito internacional da USP, prof. João Grandino Rodas (fax: (11) 3111.4014), que também preside o CADE - Conselho Administrativo da Defesa Econômica, que lida com problemas de concorrência econômica. Recomenda-se ao prof. Rodas o exame das conseqüências para a evolução saudável da Internet entre nós dos defeitos apontados pelos críticos da proposta convenção.