Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2001       Página Inicial (Índice)    


20/05/2001
Europa: a guerra pela privacidade das comunicações

A União Européia (UE) é hoje composta por quinze países, com diferentes tradições e histórias, que tentam construir uma forma de unir um continente que tem sido o palco de guerras entre seus povos desde o início dos tempos até os dias de hoje. Internamente a UE tornou mais civilizada a resolução dos seus conflitos, através da política, com um olho no eleitorado, como é apropriado numa democracia. A guerra do que falamos no título é, portanto, realizada às vezes nos bastidores, outras nos palcos mais público dos parlamentos e nos meios de comunicação pública.

Esta guerra é uma que já vem sendo travada em outros locais, especialmente os EUA e a Inglaterra, e já foi comentado neste espaço em mais de uma ocasião. Trata-se do conflito de interesses na sociedade entre a proteção da privacidade do indivíduo e o cumprimento das suas funções por setores do governo responsáveis por fazer respeitar e cumprir a lei. Esta tensão sempre existiu, pois estes últimos crêem que seu desempenho será facilitado com melhor conhecimento do que passa na sociedade, enquanto adquirir este conhecimento a respeito dos indivíduos pode agredir sua privacidade, um dos direitos fundamentais do homem. Em alguns países, como o Brasil e EUA, estes direitos fazem parte da lei básica, ou constituição, e não devem ser negociáveis - neste país fazem parte das cláusulas pétreas. Em outros países são definidos em leis ordinárias, e são sujeitos a modificação mais fácil.

Um exemplo deste último caso é a Grã Bretanha, onde não existe uma constituição explícita, e, por usar um sistema parlamentarista, onde o governo é formado pelo partido (ou coligação) majoritário no parlamento, o governo geralmente goza de excelentes condições de propor e modificar leis. Ano passado o parlamento britânico aprovou um projeto de lei que estendeu à Internet a interceptação e registro de comunicações como correio eletrônico ou acesso WWW, como analogia com o mesmo tratamento das comunicações telefônicas já permitido (v. a coluna de 28 de agosto de 2000). Esta lei obrigou os provedores de acesso Internet a instalarem "grampos" nas suas redes, que possibilitariam a interceptação oficial de tráfego Internet. Outra novidade, descrita na coluna de 11 de dezembro de 2000, obrigaria a guarda por até sete anos de registros de telecomunicações, o que incluiria uso da Internet, para que pudesse servir de evidência para eventual utilização em investigações criminais pelas agências de segurança pública. Adicionalmente, estas informações poderiam ser "pesquisadas" pelos agentes do governo, sem a necessidade de ordem judicial específica, o que hoje é necessário para operar um grampo telefônico.

A proposta de guarda durante sete anos destes registros está sendo defendida no contexto da União Européia, pois entra em conflito com outros dispositivos legais regulamentando as bases de dados pessoais, já discutidas aqui na coluna de 22 de janeiro. Segundo a legislação atual, os registros de telecomunicações de voz, que hoje são coletados e armazenados apenas para fins de contabilidade e cobrança, devem ser destruídos ou "tornados anônimos" em prazo curto (menos de 3 meses), depois de terem cumprido o seu propósito original. A proposta das agências de segurança pública de seis países (além da Grã Bretanha, estão incluídas também Alemanha, Bélgica, França, Holanda e Suécia) é de efetuar alterações na legislação de bases de dados pessoais, enfraquecendo sua defesa da privacidade do indivíduo, para "modernizar" as armas do combate ao crime neste bravo mundo novo das telecomunicações modernas. E está incluído nisto o uso da Internet.

A Statewatch, ONG britânica que se concentra na defesa das liberdades civis na Europa, publicou recentemente um relatório denunciando esta proposta, que estaria sendo discutida no Conselho da UE, e historiando seus antecedentes (www.statewatch.org/news/2001/may/03Aenfopol.htm). Este relatório atribui a iniciativa de estender os poderes de investigação das agentes de segurança pública da UE ao FBI (polícia federal norte-americana), que se engrenou antes numa campanha agressiva de estender seus poderes nos EUA, através da escuta eletrônica, introduzindo o dispositivo "Carnivore" para interceptação de comunicação pela Internet (v. coluna de 7 de agosto de 2000). O objetivo da colaboração internacional entre o FBI e as polícias da UE foi o alinhamento das operações das polícias dos diferentes países, por adoção de métodos semelhantes de investigação. Porém, como já tivemos oportunidade de comentar, há diferenças significativas da proteção da confidencialidade de dados pessoais entre os EUA e a UE. Aparentemente, atual iniciativa do Conselho da UE pretende reduzir estas diferenças, removendo algumas das proteções dadas à privacidade pela legislação européia.

O Conselho da UE representa os governos dos países membros, porém mudanças na legislação precisam ser discutidas pelo Parlamento Europeu, com representados eleitos pela população, e acabam sendo operacionalizadas pela Comissão Européia, um espécie de governo da UE. A interação entre as três entidades não é simples, pois medidas são adotadas pelo mecanismo de "co-decisão", o que significa que o Conselho, o Parlamento e a Comissão precisam concordar com a medida nova.

A posição dos Comissários nacionais de Proteção de Dados tem sido de defesa da manutenção da proteção atual da confidencialidade dos dados pessoais, e a Comissão da UE tem recomendado que nova legislação precisa manter conformidade com a existente sobre proteção de dados e privacidade. Face a esta oposição, o Conselho começou a mobilizar apoios para combatê-la, tentando co-optar a Comissão (e o Parlamento) para sua posição, e argumenta que as demandas das agências de segurança pública têm precedência sobre a privacidade e liberdade individual, citando a importância do combate a "pornografia infantil" e o "racismo" (as duas justificativas preferidas atualmente para estender os limites de investigação policial - estas substituíram o "crime organizado" e a "imigração ilegal", antes usadas da mesma forma durante muitos anos). O assunto é urgente (para o Conselho), pois a oportunidade de mudar a legislação se apresentará no segundo semestre deste ano, quando o Parlamento tomará posição a respeito. É, pois, urgente a formação de opinião dos parlamentares.

Ainda não chegou ao Brasil este nível de discussão, pois, embora a Constituição protege a privacidade do indivíduo, a eficácia desta proteção não tem sido muito investigada. O que é claro é que é importante o contexto internacional. Se houver uma uniformização de procedimentos policiais entre EUA e UE, dificilmente escaparemos da nossa adesão a este padrão. Em defesa preventiva dos direitos constitucionais daqui, deveremos torcer que seja resistida a atual investida dos governos europeus para subverter a privacidade dos seus cidadãos.