Michael Stanton

WirelessBrasil

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31/10/2001
O farol entrou em pane

Países são como parentes, são como são, com suas qualidades e seus defeitos, e só nos resta torcer que na balança geral fiquem pesando mais as suas qualidades. Considere os EUA, país criado a partir de uma revolução contra o poder colonial britânico há mais de 200 anos, que tentou, desde então, se manter fiel ao conceito do estado de direito incorporado em leis e constituição. Sua constituição, por exemplo, foi promulgada ainda no século 18, e vem sendo emendada aos poucos, para dar cobertura a novas necessidades. A parte central, entretanto, inclusive as primeiras emendas que definem os direitos básicos do cidadão, não apenas continua inalterada, como freqüentemente é interpretada pelos juizes do supremo tribunal se colocando no lugar dos seus autores originais, e perguntando como estes teriam pensado e reagido perante uma situação de hoje. A continuidade legal é impressionante. Os direitos básicos do cidadão incluem a liberdade de expressão (que não tolera censura prévia, e nem a repressão de idéias), a separação de igreja e estado, e a proteção contra invasão arbitrária de domicílio, que tenha sido aplicada no século 20 para proteger a privacidade individual. Estas questões normalmente são decididas judicialmente, e freqüentemente leis aprovadas pelo congresso são anuladas por não respeitarem os preceitos e interpretações previamente definidos.

Por outro lado, os EUA têm um congresso, com representantes eleitos pelo voto popular, e em tempos de comoção pública, o congresso, que poderia ajudar a formar a opinião pública, apenas a segue. Vimos isto nas últimas semanas, quando, na esteira dos eventos terríveis de 11 de setembro, e ajudada fortemente pela sensacionalismo da mídia e por atos do próprio governo, a população norte-americano ficou desorientada e com medo, e procurou meios de se vingar dos ataques mortíferos daquele dia, e de se defender contra sua eventual repetição. Em conseqüência temos hoje, por um lado, uma guerra não declarada contra o governo de Afeganistão, acusado de dar guarida ao mentor da agressão sofrida, e, pelo outro, a passagem pelo congresso, a toque de caixa, de legislação supostamente protetora da sociedade norte-americana, mas que acaba cobrando um preço caro em termos da diminuição de liberdades civis.

Foi sancionada na semana passada a lei USA-PATRIOT (Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism), aprovada pelo câmara dos representantes com apenas 66 votos contrários e pelo senado contra apenas um voto opositor.
Esta lei, supostamente uma resposta a terrorismo, avança em muitos sentidos os poderes dos órgãos de segurança pública (polícia) tanto no combate ao terrorismo, como no combate ao crime em geral.
Aproveitando a comoção pública, foram inseridos no projeto de lei diversos dispositivos que já haviam sido rejeitados repetidamente pelo congresso nos últimos anos, e não foram dados tempo e oportunidade para debatê-los adequadamente nesta ocasião, dado o clamor público.
A maçaroca de papel apresentada para aprovação tinha 300 páginas, pois efetuava modificações a dezenas de leis existentes.

Numa carta endereçada aos senadores na véspera do voto no senado, a ACLU (American Civil Liberties Union) analisou a proposta de lei, apontando as medidas consideradas inapropriadas para o objetivo de combate ao terrorismo (www.aclu.org/congress/l102301k.html). Entre estas se incluem:

· a prisão por tempo indeterminada de estrangeiros suspeitos de terrorismo;
· a redução de supervisão judicial de quebra de sigilo e interceptação telefônicas e de comunicação pela Internet, tanto em investigações de terrorismo, como de outros crimes;
· aumentar a capacidade do governo de conduzir invasões e buscas secretas, em investigações tanto de terrorismo, como de outros crimes;
· possibilitar designar grupos domésticos como organizações terroristas, o que permite deportar seus sócios estrangeiros;
· dar acesso ampla à polícia a informações pessoais (médicas, financeiras, educacionais) sem uma ordem judicial;
· permitir que órgãos de informações (CIA, NSA) conduzam investigações de cidadãos norte-americanos;
· criação de uma nova definição de "terrorismo doméstico", que poderia incluir grupos de oposição política, sujeitando-os a quebra de sigilo das comunicações e outras penalidades.

Já foi comentado que este conjunto de medidas em nada fica devendo ao infame Plano Houston, dos tempos do presidente Nixon, na época da guerra em Vietnã. Este plano só não foi adotado devido à oposição do FBI, dirigido então por J. Edgar Hoover, um homem não marcado por convicções liberais. Bush teve mais sorte agora. Resta ver se o mesmo é verdade para o seu país. Pelo menos várias das medidas da lei USA-PATRIOT caducam daqui a quatro anos, a não ser que forem explicitamente renovadas. E ainda resta a justiça, na forma do supremo tribunal, que poderá encontrar impedimentos constitucionais para os esforços legislativos dos parlamentares.

A reação dos comentaristas norte-americanos mais liberais perante esta situação é de tristeza que a pressa de legislar tem sido tão irresistível. Como já foi comentado aqui na coluna de 17 de setembro, em situações apressadas, ganha terreno quem já está com sua agenda previamente preparada, e neste caso foi o governo através de suas agências de polícia e de informações. Venho apontando os EUA como um farol neste mundo confuso, onde estão respeitadas as liberdades individuais, também entronizadas em nossa constituição. Porém, este farol agora entrou em pane. Que seja este incidente uma lição para nós de como é fácil sofrer um retrocesso nesta área, e que estejamos adequadamente preparados futuramente se viesse a necessidade de defender as nossas próprias liberdades constitucionais.

Numa nota menos sombria, adorei os comentários recentes de Sílvio Meira nas suas colunas recentes (silviomeira.no.com.br), onde afirmou que a Internet estava com a vida ganha porque as aplicações de videoconferência e correio eletrônico iriam de vento em popa: a primeira pela relutância das pessoas a viajar de avião, e a segunda pela sua relutância de abrir envelopes do correio postal.