Michael Stanton

WirelessBrasil

Ano 2003       Página Inicial (Índice)    


06/03/2003
A reforma do Comitê Gestor da Internet no Brasil

Na coluna anterior foi mencionado brevemente o Comitê Gestor Internet (CGI) (www.cg.org.br), cuja existência está intimamente associada à fase pública (e comercial) da Internet que começou em fins de 1994. O CGI foi criado pelo governo federal em 1995 e ficou encarregado de uma série de responsabilidades sobre o funcionamento da Internet no país, caracterizadas como exercício de governança. Estas responsabilidades incluíam: a) fomentar o desenvolvimento de serviços Internet no Brasil; b) recomendar padrões e procedimentos técnicos e operacionais para a Internet no Brasil; c) coordenar a atribuição de endereços Internet, o registro de nomes de domínios, e a interconexão de espinhas dorsais; d) coletar, organizar e disseminar informações sobre os serviços Internet. (Da nota conjunta dos ministérios de Comunicações (MC) e de Ciência e Tecnologia (MCT) de junho de 1995: www.cg.org.br/regulamentacao/notas.htm)

Inicialmente o CGI contava com nove membros, indicados em conjunto por estes dois ministérios para representar diversos interesses do governo e da sociedade civil. O número de membros foi aumentado para 12 em 1999, sendo cinco representantes do governo, e sete representantes de grupos na sociedade que têm relações funcionais com a atividade de manter ou usar uma infra-estrutura de redes de comunicação por computador. É notável que os representantes destes grupos são indicados pelos dois ministérios e não por organizações pertencentes aos grupos representados. Os grupos são:

(Da portaria interministerial no. 188 de 23/11/1999: www.cg.org.br/regulamentacao/port188.htm) A atual representação do governo e também dos provedores de infra-estrutura de telecomunicações tinham mandato de 3 anos, que venceria em novembro passado e foi prorrogado até o próximo dia 23 de março, para não deixar o CGI acéfalo no início do novo governo. Caberá portanto ao governo federal deliberar sobre seus novos titulares. Os demais representantes tinham mandato de dois anos, que já foi renovado uma vez.

Ultimamente o CGI vem discutindo propostas de reformulação da sua composição e funcionamento. Na sua reunião de janeiro último, foi apresentado e discutido o esboço de uma possível reforma, baseada em câmaras de representação de setores ou grupos na sociedade: setor governo, setor privado, terceiro setor, área de ciência e tecnologia, e assim em diante. O CGI também resolveu ampliar o debate, planejando para logo em seguida três seminários setoriais, para o setor governo, o setor privado e o terceiro setor. Os últimos dois destes seminários foram realizados durante a semana antes do Carnaval, tendo sido realizado no Rio de Janeiro o evento para o terceiro setor. Podemos ver, portanto, que está sendo investida muita energia na discussão deste assunto governança da Internet e sua reformulação. Como governança da Internet normalmente é considerada uma área bastante técnica, seria apropriado perguntar qual o motivo para realizar esta discussão exatamente agora. Para entender isto, é necessário saber mais sobre a história da Internet no país, e sobre o funcionamento operacional do CGI.

A viabilidade da Internet exige que sejam administrados eficazmente os endereços de rede (endereços IP) e os nomes de domínio (DNS). A nível mundial, estas funções são hoje da ICANN, como descrito na coluna anterior. Ao nível nacional, elas hoje são do CGI, mas não foi sempre assim. No final dos anos 1980, a FAPESP se ofereceu à IANA (Internet Assigned Numbers Authority), a antecessora da ICANN, para assumir a administração do domínio de nomes .br. Nessa época, a IANA concedeu esta delegação, e a FAPESP começou a cadastrar estes nomes, primeiro para instituições, principalmente acadêmicas, ligadas à rede BITNET, depois à Internet. Quando começou a Internet comercial, a FAPESP criou novos domínios com.br, org.br e assim em diante. Depois da criação do CGI em 1995, a FAPESP continuou a administrar os nomes de domínio, subordinando-se às políticas determinadas pelo CGI, tornando-se assim seu braço operacional, conhecido como o Registro Nacional (registro.br).

A outra função assumida pelo registro.br foi de administrar endereços de rede. Antes de 1995, endereços IP para uso no país eram obtidos diretamente da IANA. Em dezembro de 1994, com a iminência do início da operação comercial da Internet no Brasil, foi negociada com a IANA por representantes da rede acadêmica a delegação também à FAPESP da administração de endereços IP, com a criação do "bloco CIDR do Brasil", usado quase universalmente na montagem da atual rede Internet brasileira.

A administração de endereços e domínios gera custos. Embora seja em grande parte automatizado, os sistemas do Registro tiveram que ser montados e mantidos. Adicionalmente é necessário manter em funcionamento os servidores de nomes (DNS), essenciais para o uso corriqueiro da rede. Em outros países, estes serviços são cobrados das entidades usuárias que precisam obter endereços de rede para seus computadores e registrar nomes de domínio para seus sítios. Nos EUA, por exemplo, endereços IP são administrados pelo ARIN (www.arin.net) e nomes de domínio por uma pletora de organizações, das quais a maior (em termos do número de usuários dos seus domínios .com e .net) é Network Solutions, agora controlada pela Verisign (www.networksolutions.com). Ambas estas organizações são empresas comerciais, e a concessão da administração destes serviços, renovada recentemente pela ICANN no caso da Network Solutions, dá alegria a seus controladores pela receita e os lucros proporcionados.

Sim, a receita destes serviços gera "excedentes" sobre os custos de operá-los. Vamos olhar um pouco a situação de Registro nacional, que possui monopólio destes serviços no Brasil. Segundo suas estatísticas, hoje são cadastrados no seu sistema de nomes de domínios nada menos que 438.872 nomes distintos (registro.br/estatisticas.html). Pelo convênio celebrado com o CGI em 1998, a FAPESP opera este serviço, usando seu CNPJ para efetuar a cobrança. Desde o início de cobrança para o registro de nomes, que começou em 1998, os usuários deste serviço vêm pagando R$40 para o primeiro registro de um nome e mais R$40 de manutenção anual. (Nunca houve cobrança para registrar endereços de rede.) Mesmo supondo que não houve nenhum nome novo registrado em 2002, a mera cobrança de manutenção anual do número atual de nomes cadastrados, descontando as poucas isenções, teria gerado receita superior a R$17 milhões, recolhidos pelos usuários Internet de todo o país aos cofres da FAPESP. Desta receita são pagas as despesas de operação do Registro nacional, as despesas diretos do CGI, cujos membros não são remunerados, e de seus grupos de trabalho, e o financiamento eventual de projetos aprovados pelo CGI para promover a Internet. Estes já incluíram a realização de estudos, a montagem de redes experimentais de alta velocidade em sete cidades, a realização de congressos e eventos, e a participação de representantes do CGI em eventos no exterior. Entretanto a receita em muito excede as despesas, e até o final do ano passado, o saldo líquido nos cofres da FAPESP já excedia R$50 milhões, nada mal por uma operação sem fins lucrativos.

Dinheiro desta ordem naturalmente chama atenção. Sabe-se que a atual administração da FAPESP já questionou a propriedade de permitir que este dinheiro seja usado para financiar qualquer coisa que não seja financiado normalmente por ela, ou seja, que este dinheiro deveria ser usado apenas para projetos de pesquisadores do estado de São Paulo. Em outras palavras, a FAPESP estaria rejeitando a noção que o CGI tenha competência para determinar o destino de dinheiro que entrou na FAPESP em conseqüência da delegação pelo CGI à FAPESP da operação do serviço do Registro, apesar do fato das operações serem evidentemente de âmbito nacional e não estadual. Esta questão parece ainda estar em aberta.

As recentes iniciativas do CGI pretendem encerrar esta relação histórica com a FAPESP, com a criação de uma pessoa jurídica própria do CGI, ou do seu sucessor, que assumiria a operação do Registro e teria a autonomia inquestionável para deliberar sobre o uso dos recursos gerados. Por outro lado as discussões sobre como seria o eventual sucessor do CGI, abertas recentemente com grupos ou setores que não tivessem tido envolvimento direto com as suas atividades históricas, às vezes parecem dar mais importância à administração de forma apropriada do "excedente" gerado por suas operações técnicas, do que com o aperfeiçoamento destas operações. Parece equivocado este enfoque, pois a operação do registro é mantida como serviço público, e não há porque ele deve gerar este "excedente", devendo ser arrecadado estritamente o essencial para cobrir os custos de realizar o serviço. Qualquer cobrança adicional teria o caráter de imposto. O "excedente" só existe porque as taxas cobradas pelo Registro são excessivamente altas. Reconhecimento desta distorção foi dado recentemente, quando na sua reunião de janeiro último, o CGI aboliu a taxa do primeiro registro de um domínio, e reduziu de R$40 para R$30 a taxa anual de manutenção. Mesmo este valor continua alto, pois a arrecadação ainda deverá permanecer na casa dos R$13 milhões, ainda bastante superior a suas necessidades reais.

Tirando das discussões sobre o futuro do CGI o chamariz de deliberar de que forma deverá ser aplicado o "excedente" das operações do Registro, estas discussões podem voltar a concentrar-se na questão quase inteiramente técnica de manter a eficácia do funcionamento da Internet no país, como vem sendo feito há oito anos. Para tanto, a representação dos interesses no futuro CGI não deveria seguir um modelo muito diferente do que o atual, exceto que a indicação dos seus membros deveria deixar de ser feita pelo governo, passando a ser feita por câmaras funcionais que reunissem democraticamente as entidades pertencentes aos grupos identificados no segundo parágrafo desta coluna. Deste ponto de vista não parece nada apropriada a representação de interesses por setores da economia (setor privado, terceiro setor), pois as diferenças de enfoque que poderiam ser debatidos num foro como o novo CGI teriam pouco a ver com em que parte da economia se classifica as organizações cujos interesses estão em jogo.

Por exemplo, a comunidade acadêmica vem desempenhando um papel importantíssimo no desenvolvimento da Internet no país, tendo introduzido esta tecnologia entre nós, e ainda promovendo o seu aprimoramento para construir as próximas gerações da Internet. Nesta comunidade, que estaria dividida entre o setor governo e o setor privado por considerações meramente "setoriais", estão encontrados os maiores pensadores sobre as tecnologias usadas hoje e futuramente nesta grande rede de comunicação, e sobre as conseqüências para a sociedade da extensão entre nós do seu uso. Ela também oferece uma crítica desinteressada de iniciativas mal concebidas com conseqüências indesejáveis, como exemplificada por nossa coluna de 5 de fevereiro de 2001, onde foi analisada a proposta do CGI de obrigar as universidades a migrarem para nomes de domínio da categoria edu.br, felizmente transformada a tempo em uma migração voluntária. Pela comunidade acadêmica sobre assuntos de tecnologias de informação e comunicação fala a Sociedade Brasileira de Computação (www.sbc.org.br).

É claramente importante que exista uma entidade com as atribuições do CGI atual, e que sejam sanados os problemas identificados ao longo dos oito anos do seu funcionamento. Entretanto á também importante que uma eventual reforma seja feito apenas do essencial, para manter a estabilidade do funcionamento do sistema complexo de comunicação que é a Internet brasileira.

Michael Stanton (michael@ic.uff.br), que é professor do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense e também Diretor de Inovação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), escreve neste espaço desde junho de 2000 sobre a interação entre as tecnologias de informação e comunicação e a sociedade. Os textos destas colunas estão disponíveis para consulta.