Michael Stanton

WirelessBrasil

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27/02/2004
Os físicos e a exclusão digital

Na semana antes do Carnaval houve um evento singular no Rio de Janeiro, que era uma oficina sobre a exclusão digital, no contexto da física das altas energias, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, e organizado pelo professor Alberto Santoro. Neste evento se encontraram principalmente os físicos e os especialistas em computação e comunicação, por motivos que se tornarão mais claros em seguida.

Os físicos de altas energias são, juntos com os astrônomos, já comentados na coluna de 13 de fevereiro, os cientistas que manuseiam os maiores e mais caros instrumentos científicos disponíveis nesta planeta, e juntos eles exploram os limites do universo. Os astrônomos se interessam em fenômenos relacionados ao tamanho e idade da universo, e seus instrumentos são os telescópios, tanto ópticos como de rádio, que precisam ser grandes para captar sinais muito fracos que vêm de muito longe, ou, de modo equivalente, de muito no passado. E para eles o passado que interessa é de quinze ou mais bilhões de anos atrás, quando estimam que se originou o universo que conhecemos.

Os físicos, por outro lado, têm interesse no que é composto este universo, e as regras básicas que o governam. Desde a segunda metade do século 19, os físicos vêm encarnando a curiosidade humana a respeito destas regras, e devido a eles já adquirimos muito mais conhecimento, que freqüentemente se desdobrou em avanços tecnológicos com grandes repercussões sociais. Para citar alguns exemplos, mencionamos a eletricidade, a energia nuclear e os matérias semicondutores, estes últimos amplamente utilizados nos campos de eletrônica e óptica, tão importantes hoje para a computação e a comunicação. Entretanto, não são tanto os campos de aplicação que os interessam, e sim as regras em si. Para isto, tem sido necessário examinar sempre mais minuciosamente a matéria, dividindo-a em pedaços cada vez menores para entender sua estrutura e seu comportamento.

Este processo foi iniciado pelos químicos, que chegaram a identificar o que hoje são mais de uma centena de substâncias fundamentais, que chamaram de elementos, como oxigênio, ferro e mercúrio. Os químicos demonstraram que mesmo quantidades microscópicos de matéria são compostas de moléculas que combinam de um a centenas de milhares de átomos, ou unidades mínimas, de um ou mais elementos, e eles desenvolveram maneiras para separar estas moléculas e de transformá-las em outras moléculas com diferentes combinações dos mesmos átomos. Para o químico, estas transformações sempre conservam o número total de átomos de cada elemento que participa.

Ao físico interessava perguntar: o que mantém coesa uma molécula e de que é feito o átomo? As respostas completas a estas perguntas continuam sendo buscadas até hoje. Os físicos já montaram muitos modelos da estrutura da matéria, alguns já bem conhecidos, como o átomo tendo um núcleo composto de partículas "elementares", chamadas de prótons, de carga elétrica positiva, e nêutrons, sem carga elétrica, cercados por uma nuvem de outras partículas chamadas de elétrons, de carga elétrica negativa. No estado básico, o número de elétrons seria igual ao número de prótons, e o átomo seria eletricamente neutro. Na molécula, por outro lado, haveria transferência de elétrons de átomos de um elemento para átomos de outros, com o resultado que alguns átomos, ou íons, como são chamados neste estado, teriam carga elétrica positiva ou negativa, e as moléculas seriam uma forma estável resultando da atração mútua de íons com cargas diferentes. Este modelo elétrico não oferece explicação para a coesão do núcleo do átomo, formado por uma combinação de prótons e nêutrons, onde os prótons deverão se repelir mutuamente, por terem eles todos carga positiva. Para cobrir este defeito do modelo, os físicos inventaram um novo mecanismo, muito poderoso, capaz de manter coesos núcleos de até uma centena de prótons se repelindo eletricamente. A energia nuclear vem da divisão em duas ou mais partes menores de um núcleo grande desses.

O estudo desse novo mecanismo requereu aplicar forças grandes a nível nuclear, e foi aqui que se iniciou a construção dos grandes laboratórios de física nuclear e subnuclear, que dominam a física experimental. Nesses laboratórios residem os grandes aceleradores de partículas, que criam feixes de partículas em altas velocidades, que são então jogados contra alvos para estudar as conseqüências das colisões. Para acelerar as partículas nestes feixes, elas são conduzidas por caminhos anelares e sujeitadas a campos eletromagnéticos que as propelem cada vez mais velozmente. Nos primeiros aceleradores, o diâmetro dos anéis de aceleração eram pequenos (de alguns dezenas de metros). Hoje chegam a quase uma dezena de quilômetros, e sobem na mesma medida a energia das partículas aceleradas.

O uso desses aceleradores desde a Segunda Guerra Mundial vem tornando sempre mais complexos os modelos que os físicos constroem para explicar a estrutura da matéria. O modelo inicial de apenas três partículas elementares deu lugar a outros, com números cada vez maiores. Todos os modelos são fundamentalmente exercícios na matemática, nos quais se procura adequar-se a fatos ou observações já conhecidos, e que permitem prever novas observações. Os modelos atuais são povoados com partículas elementares com nomes como quarks, léptons e bósons.

O maior laboratório deste tipo é o LHC - Large Hadron Collider, atualmente em construção no CERN - Organização Européia de Pesquisa Nuclear, localizado próximo de Genebra, na Suiça (v. public.web.cern.ch). Quase 10 vezes maior que seus antecessores, este laboratório está sendo construído num túnel anelar de 27 km de circunferência e a 100 metros de profundidade. O custo, dividido por quarenta países, inclusive Brasil, excede dois bilhões de dólares. Espera-se iniciar sua utilização em 2007, quando poderá ser iniciados experiências para identificar o Bóson de Higgs, que poderá ser reponsável pelo que conhecemos como a massa de partículas (v. www.pparc.ac.uk/Rs/Fc/LHC.asp).

O início da operação do LHC vem sendo esperado ansiosamente há vários anos pela comunidade de físicos das altas energias, e ela vem se preparando para este evento há vários anos. Em parte isto envolve a própria montagem do laboratório e sua instrumentação sofisticada, usada para realizar as observações das colisões provocadas pelo acelerador. Há também que considerar o que fazer com os resultados destas observações. Há vários milhares de pesquisadores em dezenas de países, que estão interessados em ter acesso às observações, as quais, em última análise, serão armazenadas em computadores. Esta comunidade de pesquisadores vem discutindo há anos maneiras de prover acesso amplo a elas, que em volume prometem ocupar vários petabytes de dados por ano (um petabyte = mil milhões de megabytes, e equivaleria à capacidade de uma pilha de CDs de 1600 metros de altura). Para lidar com este torrente de informações, que precisa ser armazenado e processado, os físicos planejam empregar milhares de computadores instalados nos seus laboratórios ao redor do planeta, acoplados entre si para formar um chamado grade computacional. Para funcionar bem, os caminhos entre estes computadores precisam ter grande capacidade, e eis a razão pelo enorme interesse atual dos físicos pelas redes de computadores de grande capacidade.

Na oficina na UERJ, estiveram presentes vários palestrantes que falaram sobre os avanços nas redes usadas por estes pesquisadores, e especialmente nas suas conexões internacionais, que permitem exportar os dados gerados no CERN para os quatro cantos do globo. Muitas destas conexões hoje permitem fluxos de dados em 10 gigabits por segundo (1 gigabit = 1000 megabits), que representa o estado da arte de comunicações atualmente. Em alguns casos, os físicos vêm sendo os primeiros usuários das novas tecnologias ópticas de rede, tais como a comutação óptica, que hoje está disponível nas redes acadêmicas em apenas duas cidades: Chicago e Amsterdã, nos centros Starlight (www.startap.net/starlight/) e Netherlight (www.surfnet.nl/innovatie/netherlight/).

Como mencionado inicialmente, o tema da oficina na UERJ era a exclusão digital, no contexto da física das altas energias. Este decididamente é um assunto diverso do que se entende comumente por exclusão digital, que trata do não atendimento pelas tecnologias de informação e comunicação das necessidades e vontades do cidadão comum. No caso dos físicos, estamos em outro plano, discutindo até que ponto a globalização da ciência em geral, e este ramo de física de altas energias em particular, consegue incluir todos os países, ou, pelo menos, aqueles onde são realizadas atividades de educação e pesquisa científicas. Um dos critérios usados para qualificar o grau de inclusão digital é a capacidade da conectividade das redes usadas para permitir seus cientistas colaborar com seus pares em outros países, por exemplo, no processamento das observações a serem geradas pelo laboratório LHC no CERN. Como foi mencionado, o padrão atual de comunicação internacional já alcança 10 gigabits por segundo. Para permitir comparação, devemos notar que os físicos no Brasil dispõem hoje de dois canais de 45 megabits por segundo (0,45% do padrão internacional), os quais deverão aumentar para 155 megabits por segundo em 2004 (1,55% do padrão internacional). Visto nestes termos estamos longe de poder colaborar eficientemente neste ramo.

Uma parte do problema é o custo, mas isto já está muito menor do que era há bem poucos anos, e, com o aumento de competição, os preços continuarão a cair. Um segundo fator que torna menos produtivo o dinheiro investido em ligações internacionais é a ineficiência inerente na falsa duplicação de conexões. Hoje, as redes de ensino e pesquisa no país estão ligadas ao exterior através das atividades do governo federal, através da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa - RNP, e dos governos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, através das suas redes estaduais, a ANSP (www.ansp.br) e a Rede-Rio (www.rederio.br). Desde 1992 as compras de conectividade internacional destas três iniciativas são feitas de forma independente e sem coordenação. É relativamente fácil demonstrar que a capacidade obtida através desta prática é bastante inferior àquela que seria obtida se fosse realizada uma compra em bloco. Ou seja, não está sendo utilizado de forma eficiente o poder de compra dos órgãos governamentais do ramo. O cenário oposto é demonstrado pelos europeus, onde as iniciativas nacionais de mais de trinta países, ocupando juntos uma área geográfica menor que o Brasil, foram fundidas no plano internacional, permitindo o compartilhamento de recursos dos diferentes países para comprar conexões de uso comum para outros continentes, inclusive para a América Latina a partir de maio. Uma abordagem semelhante no Brasil seria um grande passo para ajudar nossos cientistas, entre os quais os físicos de altas energias, a superarem a exclusão digital da qual ressentem.