A Lua Branca e a Estrela de Ouro

Autora: Mariana Rezende

Capítulo 2

O "mostro"


                Milhares de pessoas estavam paradas, em uma enorme fila, em uma longa escada. Todas vestiam túnicas compridas e brancas. 
                E no início da fila estava uma garotinha, de apenas quatro anos. 
                Ela chorava e soluçava, desesperadamente. Dois homens corpulentos seguravam,violentamente,seus bracinhos.

                Chegou o momento. Ela ouvia tambores. Os homens a seguraram no alto e começaram a andar. Então ela viu. Viu um grande bicho-monstro ( não sabia direito o que era ), com uma enorme boca escancarada. Presas afiadíssimas causavam terror na menina, apenas de olhá-las. Os homens pararam, murmuraram algo que soava terrível, como o rugido de um jaguar para um coelho, e o monstro abriu mais ainda a bocarra cheia de dentes. A garotinha se debatia, em uma louca fúria, mas os homens a seguravam firmemente.

                Aí aconteceu o escuro, e ela acordou. Respirava com muita dificuldade e estava muitíssimo amedrontada. Ela suava frio. A menina encolheu-se na esteira e puxou um lençol para junto de si. Algo ao lado dela gemeu e ela soltou um gritinho, que soou rouco no início e estridente no fim. Vento Veloz, o "algo que gemera", acordou e percebeu a irmã encolhida como um rato, com o seu lençol firmemente agarrado.

                - Lua Branca! Você está bem?

                - Nã... tô sim! - a menininha percebeu que estava na sua casa, segura e confortável. Olhou ao redor e lá estavam seu pai, sua mãe e os três irmãos, todos olhando, assustados, para ela

                - Minha pequenina... - Vento Suave a pegou no colo, carinhosamente - o que aconteceu?

                - Nada. Foi só um sonho. Um sonho feio.

                A mãe deixou-a nos braços do pai e foi à área da cozinha preparar um chá. O cachorro arranhava a porta, desesperado. Vento Suave abriu-a, ele entrou feito um foguete e foi para o quarto. A mulher não se importou e voltou a preparar o chá.

                - Bonzinho! - exclamou Lua Branca, ao ver o cão. Este pulou no colo da menina e começou a lamber-lhe o rosto.

                - Ele veio ver se você está bem, Luazinha! Que bom cachorro! - Crocodilo Bravo disse.

                - Por isso ele se chama Bonzinho! - Lua Branca estava muito feliz em ver o cão.

                - Ele é um cachorro muito especial, não é, Bonzinho? - a mãe entrou no quarto com o chá, e o cão latiu em resposta.

                - Chá! - pediu a menina.

                - Isto, tome tudo! - o pai da menina, ainda com ela no colo, enxotou o cachorro que estava no colo da garotinha - Já está melhor?

                Lua Branca balançou a cabeça positivamente e o pai colocou-a novamente na esteira e foi dormir.

                Antes de se deitar completamente, Lua Branca sussurrou para o irmão, Grande Águia:

                - Tô com muito medo. Foi um sonho feio. Você vai me proteger do "mostro"?

                - Sim. Fique tranqüila, vou te proteger do monstro.

                - Do "mostro"?

                - Não, do monstro.

                - Tá. Do "mmónnstro".

                - Sim. Não tenha mais medo - e sorriu - Durma bem.   
                  Dizendo isto, beijou-a e deitou-se.

                  No dia seguinte, Lua Branca acordou cedo. 

               - Se eu dormir o "mmónnstro" vai me pegar - dizia para si. Logo, um sacerdote passou pela rua acordando a população com sua concha-trombeta.

                Vento Suave viu  que a filha não estava no quarto. Quase se desesperou. Correu para a cozinha e encontrou-a brincando com o cachorro.

                - Pelos deuses, minha filha! Que susto você me deu!

                - O que eu fiz de "erado", mamãe?

                - Errado! Você me deixou preocupada!

                - Por que? Não fiz nada!

                - Você sumiu! Por quê?

                - Não sumi, não, mamãe! Estou aqui, não estou?

                - Ah, minha Lua Branca! É verdade! Me preocupei à toa! Como sou boba!

                - Não é não! Você não fez nada para ser boba! Bobo é o Bonzinho, que, toda vez que escuta uma trombeta foge de medo! (o cachorro latiu, indignado)

                As duas riram muito. Até que Vento Suave se levantou para tomar banho.

                - Quero ir junto! Quero tomar banho!

                - Então vamos!


                O escuro... estava voltando... voltou. Lua Branca acordou. Sua mãe e seu pai estavam ao lado dela. A menina saltou sobre o pai, choramingando.

                - O sonho feio! O "mostro"! Veio me pegar! Não deixe, papai! Não deixe o "mostro" pegar a Lua Branca! Ele não pode! Me protege! 

               A menina estava muito aflita. Este sonho fora muito pior que o anterior. Ela sentira a língua encharcada do monstro em sua pele. Quando estava prestes a ser mastigada, acordou.

                - Como ela dormiu? - Guerreiro Valente estava angustiado. Nunca vira a filha tão amedrontada daquele jeito.

                - Não sei. Acho que foi com o calor do banho [1]. Ela estava tão bem... - Vento Suave estava tão aflita que mal podia falar.

                Levaram-na para a cozinha, onde os três filhos esperavam. A mãe foi preparar um chá. O pai sentou-se, com a menina tremendo em seu colo. Os meninos explodiram em perguntas.

                - Ela sonhou com o tal monstro outro vez. Muito estranho. Ela dormiu por um brevíssimo período e teve tempo para sonhar! Isso não é comum.

                Depois de tomar o chá e recuperar o fôlego, Lua Branca virou-se para Grande Águia:

                - Você disse que ia me proteger. Você não estava lá. Por que você  não me salvou?

                O irmão quase chorou. Se sentia culpado, inútil. Lua Branca era muito querida em toda família.

                - Seu irmão não tem culpa, filhinha! Nos sonhos ninguém interfere. - disse Guerreiro Valente.

                - Me desculpe, Luazinha! Me desculpe - foi tudo o que conseguiu dizer Grande Águia.

                A menina saiu do colo do pai e deu um enorme abraço no irmão. - Não precisa se desculpar - ela disse - não ouviu o que o papai disse?  

                Desta vez, o irmão desabou em lágrimas.

                - Por que está chorando? Homens valentes não choram! - e, virando-se para a mãe, disse: - Estou com fome, mamãe! Ainda não comi!

                Já passava das seis horas. Vento Suave andava de um lado para o outro, na área da cozinha.

                - Onde se meteu o seu pai? Já passa da hora!

                - Minha mãe, por que se preocupa? Meu pai não é um de seus filhos! - Crocodilo Bravo sabia muito bem que que o pai era valente e forte o suficiente para enfrentar cinco jaguares.

                - Minha mãe se preocupa à toa - Lua branca disse, ao lembrar-se de como a mãe ficara preocupada quando não a encontrou no quarto.


                - Mas ela não é boba!


                - Sabemos disso, Luazinha. O bobo aqui é o Bonzinho, né?  - Vento Veloz cutucou o cachorro,  que estava deitado ao seu lado.

                Bonzinho arranhou-lhe o dedo:
                - Ai! Bonzinho safado! - disse Lua Branca, quase caindo de tanto rir.  
                - Mãe, faça o jantar!  Assim, quando meu pai chegar, terá fome e poderá comer! Se eu soubesse cozinhar, faria o jantar! Mas você ainda não me ensinou!

               - Boa idéia, Luazinha! Vamos, mãe! estamos com fome também! - disse Grande Águia para fazê-la esquecer o marido por um momento.

               - Está bem. Vou preparar a comida. 

               No momento em que a comida ficou pronta, Guerreiro Valente entrou pela porta.

               - Ah, homem! Onde se meteu? - perguntou Vento Suave aliviado.

               - Fui pedir permissão.

               - Permissão? Para quê?

               - Estava no grande Palácio, conversando com o Imperador. Fui pedir permissão - e consegui - para ensinar minha filha a usar armas e  a se proteger.

               - Está louco? Como consegui ver o "tlatoani"? [2]  Você não pode treinar sua filha! É um trabalho muito pesado! E por que? Por que quer fazer isso? - Vento Suave estava quase gritando.

               - Acalme-se, mulher. Não estou louco. É uma história muito longa. Eu posso e vou treinar nossa filha. - e virando-se para a menininha que prestava atenção à sua tortilla [3], e não ouvira nada, perguntou:

               - Você quer que a treine, filhinha?

               - Quê? Treinar? Vou aprender a cozinhar?

               Ninguém resistiu ao riso. Em meio às gargalhadas, Lua Branca perguntou:

              -  Do que vocês estão rindo?

               - Nada não, Luazinha. - disse Vento Veloz, parando de rir no mesmo instante.
               - Meu pai quer ensinar-lhe a usar armas e não cozinhar!

               - Usar armas? Para quê?

               - Para você combater o monstro, filhinha.  O monstro dos seus sonhos feios.

               - Ah! Oba! Quero sim!

               - Então vá começar a treinar com seus irmãos ,que eu vou comer.

               Quando eles saíram, Vento Suave perguntou, indignada:

               - Combater o monstro? Pelos deuses, você está louco! O tal bicho está nos sonhos dela! É uma invenção dela! Não vai ajudar em nada!

               - Vai sim! Lutando ela terá mais confiança e não terá  medo!  Eu fui ver o astrólogo que esteve aqui no dia em que ela nasceu. Ele está preocupado. A cor da menina, o céu sem estrelas e agora os sonhos!  Os deuses podem estar tentando se comunicar conosco!

               - Você acha que ela não vai se assustar  com o treinamento? Não podemos esperar?

               - Não, não podemos.

               - Bom, se é para o bem dela...
               


[1]     As crianças astecas começavam a trabalhar muito cedo, aproximadamente aos 5 anos.

[2]   "Tlatoani" significa 'orador". Era a pessoa mais importante do reino asteca.             

[3]  Tortilla (lê-se tortilha) - espécie de pastel que era feito de milho


[Anterior]          [Próximo]