A Lua Branca e a Estrela de Ouro

Autora: Mariana Rezende

Capítulo 4

LEMBRANÇAS


     "Que lugar estranho... Onde estou? Não, não estou. Não me vejo. Apenas minha mente está neste lugar. E que lugar é este? Será um sonho? Mas se é um sonho, por que eu não consigo acordar? Mas... não sei se estou dormindo..." Lua Branca estava em algum lugar. Mas qual lugar? Um lugar vazio, cheio de nada. Nada. Nada. Era tudo o que havia lá. Nada e sua mente. "Alguém me ajude... Quero voltar..."

     De repente apareceu algo. Algo que estava envolto de luz. E essa luz impediu a mente de Lua Branca de pensar. Uma sensação de conforto invadiu o corpo da menina, que estava dormindo profundamente, no quarto da pequena casa. Mas sua mente ainda estava naquele lugar estranho, com algo mais estranho ainda. O que era aquilo? Sua mente raciocinou novamente. E ela ouviu uma voz vinda daquela luz misteriosa, dizendo: "Você cresceu" "Você está se tornando ..."

     Acordou.

     - Ah, que bom! Era um sonho, então? – sentando-se, Lua Branca esforçou-se para lembrar daquele sonho tão esquisito – Aquela voz me disse que eu estava me tornando... O que mesmo ela me disse? Ah, é! Eu acordei bem na hora que...

     Algo frio e úmido encostou em sua perna. Inclinando a cabeça, a menina viu o cachorrinho, seu cachorrinho, companheiro de momentos tristes e alegres, esfregando o focinho em seu joelho, como se quisesse acordá-la.

- Bonzinho! Foi você quem me acordou? – o cachorro abanava o rabo e latia freneticamente.

- É. Acordou você e eu também!

- Ah, Vento Veloz! Seu sono é muito leve e o cachorro não tem culpa!

- O meu sono é muito leve? Foi você quem acordou com o focinho do cachorro!

- E você acordou com o quê?

- Eu acordei com o barulhão que o Bonzinho estava fazendo na porta. Estava desesperado. Parecia que tinha um monstro perseguindo-o!

- Monstro... – lembranças de outros sonhos inundaram a mente da  menina – Ai! Não fale em monstro! Eles me dão calafrios!

- Eu sei!

- Sabe o quê?

- Sei porque você tem tanto medo dos monstros, apesar de eu dizer inúmeras vezes que eles não existem.

- Existem sim! Eu já vi um!

- Onde? Onde você viu?

- Ah, não sei exatamente onde, mas eu vi um sim! E mais de uma vez!

- Você o viu em seus sonhos, Luazinha! Há três anos atrás!

     A menina fez uma conta nos dedos.

- Quando eu tinha três anos?

- Quando você tinha quatro anos – corrigiu o irmão - Você ficava muito amedrontada. Foi por isso que papai decidiu treinar você. Mamãe ficava muitíssima assustada. Pensava que aquilo era castigo de algum deus. Mas nosso pai achava que você estava muito insegura.

- Querem falar mais baixo? Quero dormir! – bradou Grande Águia – Vocês vão acabar acordando a vizinhança inteira!

- Exagerado! – responderam Vento Veloz e Lua Branca, mas trataram de fazer menos barulho.

- Está com sono? – perguntou Lua Branca a Vento Veloz, depois de alguns minutos em silêncio.

- Não.

- Então conte-me mais.

- Contar o quê?

- Contar mais sobre meus sonhos, sobre papai, mamãe, sobre você e meus irmãos, sobre o que eu fazia, sobre...

- Nossa! – interrompeu Vento Veloz – Grande Águia tem razão! Você se parece muito comigo! Você é muito curiosa!

- Ah, é que eu não me lembro do que aconteceu há três anos! Não me lembro nem do que aconteceu na semana passada!

- Então, diga sobre o que você realmente quer saber. Mas diga uma coisa de cada vez! Se eu souber, responderei com o maior prazer. Conversar me dá sono! – Vento Veloz queria dormir, mas gostava muito de falar.

- Como foi que o Bonzinho entrou para a nossa família?

- Ah, eu me lembro bem. Quando você fez três anos, nossa mãe resolveu comprar um cachorro para engordá-lo e comê-lo [1] depois de quatro meses.

- Ela ia comer o Bonzinho? – Lua Branca perguntou, chorosa.

- Acalme-se! Você sabe que compram cachorros para comê-los! E ainda não contei a história toda!

- Tá bom! Mas se alguém comer o Bonzinho, eu conto para o meu pai!

- Ninguém vai comer seu cachorro! – Bonzinho, que adormecera alguns instantes, acordou e, quando percebeu o que estavam falando, escondeu-se entre Vento Veloz e Lua Branca – Cachorro bobo! Já disse que ninguém irá comê-lo!

     Bonzinho soltou um ganido baixinho, e sua dona acariciou-lhe a cabeça.

- Continue – pediu Lua Branca.

- Mas mamãe não conseguia engordá-lo, pois ele ficava correndo atrás de você, e assim mantinha-se em forma. Quanto mais comida mamãe dava a ele, mais ele corria atrás de você e mais emagrecia – os dois abafaram os risos, para não acordarem Grande Águia outra vez.

- Ele corria atrás de mim? Eu corria para onde?

- Não. Você não corria. Nosso pai o levava consigo para a plantação de milho. Ele ficava desesperado, tentando achar o caminho de volta, mas como a plantação é cercada por água, e ele não sabia nadar, ficava correndo de um lado para o outro tentando encontrá-la. Não preciso dizer que ele não conseguia, né Bonzinho? Bonzinho? Ih! Ele dormiu! Cachorro preguiçoso!

     Os dois ficaram ali, deitados, escutando o barulho dos insetos do lado de fora, por um longo tempo.

- Está com sono? – Lua Branca perguntou, novamente a seu irmão.

- Não – mais uma vez, Vento Veloz respondeu.

- Quer sair?

- Sair onde?

- Ah, sair de casa, ora!

- Para ficar sentado, olhando para o nada?

- É, talvez...

- Que chato! Então vamos.

     Lua Branca suspirou. Não era a primeira vez que seu irmão caçoava dela. Ela levantou-se rapidamente, puxou o braço do irmão para levantá-lo, saíram e sentaram-se junto a parede.   

     Depois de uns quinze minutos, eles ainda estava do lado de fora. Lua Branca adormecera, recostada ao irmão. A menina dormia tão serenamente, que Vento Veloz não quis acordá-la. O menino estava com sono, mas não conseguia dormir. Então ficou ali, parado, apreciando a brisa da noite, que acariciava-lhe o rosto.

     De repente, ele ouviu um ruído. "Deve ser uma lebre", pensou. O barulhinho ficou um pouco mais forte, como se algo grande estivesse se aproximando. E estava.


[1] Os astecas criavam cachorros como animais de estimação para comê-los depois.


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